Ela ainda não era Anita. Seu nome de batismo era
Ana Maria de Jesus Ribeiro, conhecida como Aninha. Aninha do Bentão, como seu
pai o tropeiro Bento Ribeiro da Silva era conhecido.
Aos quatorze anos casou com Manoel Duarte de
Aguiar. Casamento arranjado, de conveniência. O amor vem depois. O de Aninha
não veio e teria durado quatro anos.
Mas,
o que aconteceu com o casamento afinal? Como foi a relação conjugal? Manoel Duarte foi o grande culpado pelo término?
Tudo o que se sabe são
conjecturas, suposições, quimeras.
O pessoal inventa, imagina, cria arquétipos. Se diz na
linguagem literária que são licenças poéticas de autores. Mas há quem acredite
em tudo o que é contado.
O primeiro casamento
Já órfã de pai, em seus 14 anos Aninha se casou às onze
horas da manhã de um domingo, 30 de agosto de 1835 com Manoel Duarte de Aguiar.
Matrimônio na igreja Santo Antônio dos Anjos assinado pelo vigário Manoel
Ferreira da Cruz.
Testemunhas? João Joaquim Mendes Braga e Antônio Duarte de Aguiar. O
primeiro foi padrinho de Aninha. O último, irmão do noivo.
Saliente-se que a certidão de casamento foi descoberta em 1907 pelo
historiador Henrique Boiteux no livro quinto dos “Atos Matrimoniais da Diocese
da Laguna”.
Dizem que Aninha se arrumou para as núpcias na casa ao lado da igreja pertencente ao professor Anacleto
Mendes Braga e de sua irmã Ana Mendes Braga, os dois solteiros e irmãos de seu
padrinho. Hoje ali funciona o Museu Casa de Anita.
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Igreja Matriz no século XIX, ainda sem as duas torres construídas em 1894 por Marcos Gazola e Batista Uliano. À esquerda na foto o antigo cemitério e à direita a casa do professor Anacleto e de sua irmã Ana Mendes Braga, onde Ana de Jesus Ribeiro se preparou e festejou seu casamento, conforme o historiador Saul Ulysséa. |
Vestido branco alugado, sapato, véu e grinalda. Era de praxe moças
pobres, principalmente as do interior recorrerem a d. Ana Braga para em sua
casa se arrumar e festejar, diz Saul Ulysséa em seu Livro “Coisas Velhas”.
Esse historiador lagunense também salienta que obteve um testemunho de como
eram as vestes da noiva e seus sapatos:
“A saia era de filó azul muito claro, tendo de
espaço em espaço umas tiras escuras, estreitas, estampadas. Entre as tiras uns
pontinhos bordados a retrós preto, mercerizado.
Era todo ele de pequenas pregas e muito rodado.
O corpete da mesma fazenda, guarnecido de
barbatanas formando um bico na frente.
Mangas compridas com grande fofo nos ombros.
Saia e enfeite eram sombreados com fazenda azul.
Os sapatos de camurça branca, simples, liso com um tufozinho
de seda branca na frente e salto não muito alto e redondo”.
E foi o mesmo Saul Ulysséa quem disse – e depois
repetido por muitos outros autores - que Aninha ao sair da igreja, um sapato,
por ser muito folgado, escapou-se de seu pé, o que seria considerado mau agouro.
Um casamento comum
Na falta de capelas e igrejas no interior do município era na igreja
Matriz da Laguna que se efetuava a maior parte dos casamentos.
Casamento comum na época. Nossas avós, bisavós e tataravós casavam-se
nessa faixa etária E logo também engravidavam de extensa prole. Dez, doze,
quatorze filhos. Ou até mais. Uma escadinha. Era normal. A mortalidade infantil
também era alta.
Foi o caso do matrimônio de Aninha. Casamento arranjado, certamente pela
mãe Maria Antônia de Jesus, de conveniência para melhorar a situação financeira
da família.
Manoel foi um arrimo. Como muitos matrimônios acontecidos em famílias
tradicionais ou não. Como ainda hoje em certos segmentos, castas. Arranjados
para manter ou aumentar a fortuna.
Jovens prometidas desde cedo, ainda crianças. O amor vem depois, dizem
as mães casadoiras, interesseiras. Às vezes o amor não vem.
O de Aninha não veio e teria durado quatro anos. Como viveu o casal que
não teve filhos? Ninguém sabe. Não ficaram registros à posteridade.
Mas, o que teria acontecido com o casamento afinal? Tudo o que se sabe são
conjecturas, suposições, quimeras.
O pessoal inventa, imagina, cria arquétipos. Há autores que descrevem verdadeiras ficções. Se diz na linguagem literária que são
licenças poéticas de autores. Há quem acredite em tudo o que é contado.
Afirmações sem qualquer base. Muitas delas preconceituosas como o fato
de Manoel ser sapateiro. Profissão das mais dignas, honradas. E na época bem
valorizada.
Os artesãos ganhavam muitos bons réis consertando botas, botinas, sandálias
e tamancos, esses em sua maioria conforme tradição açoriana trazida d'além
mar.
Sapatos para sinhás-moças e senhorinhas eram um luxo. Importados. Da
França, em sua maioria. Só uma elite usava.
O povo? Bem, o povo andava descalço, inclusive crianças, pescadores e
escravos.
Mas voltemos ao Manoel.
Quem era Manoel Duarte de Aguiar
Sem dúvida foi personagem meteórico na vida de Anita. Dele não há fontes
primárias e/ou mesmo testemunhais. Nem mesmo um desenho.
Sabe-se que era filho legítimo de Francisco José Duarte e de Joaquina
Rosa de Jesus, ela natural da cidade de Desterro. Autores dizem ter sido Duarte
de Aguiar marítimo, mas não há comprovação.
Como foi o relacionamento deles dois? Aninha e Manoel? Ninguém sabe.
Reacionário, ciumento, alcóolatra e feio. Será?
Há autores que dizem ter sido Manoel “caladão e austero” e que gostava
de pescarias noturnas e cachorros.
Foi Ruben Ulysséa quem disse que o “pacato” Aguiar era chamado pela
alcunha de “Manoel dos Cachorros”. O apelido pegou e demais autores e historiadores só repetiram.
Algum problema nisso? É depreciativo apreciar uma boa pescaria? Ou
gostar de cachorros?
O emérito pesquisador e escritor Wolfgang Ludwig Rau em sua obra afirma
que Manoel era “acanhado com pessoas estranhas” e que “cedo começou a demonstrar
em casa o seu caráter conservador e ciumento”. “Era reacionário a todas as
novidades”. “Apoiava o poder constituído, monárquico”.
Outro autor, Ivo d’Aquino diz que Aninha se queixava para o padrinho e
mãe que o marido Manoel “dera para beber”.
Saul Ulysséa em seu livro “Coisas Velhas” afirma que Manoel “pouco tempo
depois de casado, deixou-se levar pelo abuso do álcool, aumentando naturalmente
o aborrecimento ou talvez o desgosto de Anita”.
E mais: “Quando em Laguna entravam os farrapos ou pouco tempo depois, o
marido de Anita, que era legalista, se retirou da Vila e se foi juntar às
forças legais, talvez em consequência da falta de felicidade no lar”.
Já Ruben Ulysséa escreveu: “O casamento não tinha expressão para a pobre
Anita. Jamais amara o sapateiro, jamais a ele se prendera pelo coração”.
Walter Zumblick em seu “Aninha do Bentão” narra que o casamento durou...
“Um ano, se tanto, foi quanto durou o mesmo, ainda
que já tivessem lá as suas rusgas conjugais antes disso. (...) Ele, o marido,
cada vez mais enclausurado, mais encaramujado, no seu ciúme, no seu silêncio,
nas suas intransigências, ensimesmado e resmunguento”.
E realçou Zumblick:
“Introvertido e quase sempre absorto e perdido em
cismas, Mané Sapateiro, como era mais conhecido, morava dentro do seu mundo. Um
mundo descolorido, difícil, solitário”.
Outro autor afirma que Manoel não era viril, portanto, não houve
relacionamento sexual entre o casal e por isso – vejam só o torto raciocínio! –
não tiveram filhos. E ainda:
Que Manoel não ostentava beleza física, um eufemismo para dizer que era
feio. Há até quem afirme que ele agredia a esposa!
Em busca de um culpado
Coitado do Manuel Duarte de Aguiar!
Sobrou para ele toda a culpa pelo
fim do casamento. E ainda foi chamado de reacionário, cismático, resmunguento, ciumento, bebum, de feio e
que não dava no couro, no máximo fazia uma meia-sola com Aninha. Logo ele, um sapateiro.
Baseados em que essas afirmações? Onde esses dados foram apurados? Quem
foram as testemunhas desses acontecimentos?
Puras conjecturas, achismos e meras deduções buscando motivos para explicar
a ruptura matrimonial.
Digamos que é um arquétipo, maneira de tentar justificar a atitude de Ana de Jesus
em abandonar seu primeiro marido, e partir para seu romance com seu grande amor
Giuseppe Garibaldi e entrar para a história.
Cabral diz: Deixou porque se apaixonou por outro. E ponto final!
Oswaldo Cabral no prefácio de “O Perfil de uma Heroína Brasileira”, de
Rau, ao meu ver foi cirúrgico e quem mais abordou acertadamente essa questão quando diz:
“Não faz sentido
pensarem os nossos historiadores do passado (e alguns do presente), que para
ser uma heroína, para se ter ingresso na imortalidade, para se figurar no
Panteão da História é imprescindível atestado de boa conduta, folha corrida,
carta de antecedentes ideológicos, atestado de vacina, CPF e outros documentos
que nos situam no tempo e espaço”.
E sublinha Cabral:
“Anita deixou o marido, abandonou-o porque se
apaixonou pelo aventureiro de bela estampa, audaz, que lhe prometia (e lhe
deu...) uma vida fora da obscuridade da Carniça ou do Passo da Barra. E está
acabado o assunto”.
E finaliza Cabral:
“Dentro das regras aceitas pela sociedade, não há
justificativa que sirva, nem mesmo a de descarregar sobre os ombros do pobre
Aguiar a responsabilidade do ato da esposa, imaginando-o – e apenas por
conjecturas – um tolo, um molerão, um incapaz.
Quando uma mulher se dispõe a abandonar o marido,
ainda que ele seja o maior homem da paróquia, ela o faz... Justamente as que
teriam justificativa para fazê-lo são as que nunca os largam...”.
Perfeito e coorente raciocínio do nosso saudoso e ilustre historiador lagunense Oswaldo
Rodrigues Cabral!
A verdade é que muitos autores dão asas as suas imaginações, inventando
fatos, ressaltando pormenores que provavelmente nunca aconteceram. Criam cenas
que ficam bem no papel, no palco e nas telas, mas que não correspondem à
verdade da história.
E há quem leia, assista e acredita piamente em todas as afirmações.
A sociedade sempre procura um culpado quando há qualquer tipo de separação,
ruptura, inclusive em negócios. Faz parte da índole humana encontrar um
responsável pelo que não deu certo, pela falha, pelo erro cometido. A culpa
sempre é do outro.
Machado de Assis já dizia que "gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor".
Aos 18 anos, em 1839, Aninha conheceu o ruivo italiano Giuseppe, um dos
líderes da Revolução Farroupilha. Apaixonou-se. E entrou para a história como a
Heroína de Dois Mundos. Isso todo mundo sabe. Livros, filmes, séries de
televisão e peças teatrais narram toda a saga, principalmente o romance. Dá
mais ibope.
E como Aninha virou a heroína Anita e se destacou merecidamente na
história, põe-se a culpa da ruptura do seu primeiro casamento no pobre Manoel
Duarte de Aguiar, ao meu ver um grande injustiçado nessa história toda.
Quem poderia esclarecer não o fez
Enfim. Quem do Manoel poderia falar não falou. Nem Anita nem Garibaldi.
Em suas memórias ditadas a Alexandre Dumas instado pelo autor a clarear
uma passagem onde Manoel aparecia, Garibaldi disse:
“Se algum erro foi cometido, por ele somente eu
devo responder. E um erro teve lugar se, ao enlaçaram-se, dois corações
dilaceraram a alma de um inocente.
Mas ela está morta, e ele, vingado. Onde foi-me
dado a conhecer a dimensão da culpa? Lá, nas embocaduras do Eridan, no dia em
que, esperando para disputá-la com a morte, eu segurava convulsionado o seu
pulso, sentindo-lhe os últimos batimentos; no dia em que eu inspirava o seu
hálito fugidio; em que eu colhia com os meus lábios a sua respiração ofegante;
e em que eu beijava, oh, luto!, lábios desfalecidos; e em que cingia, oh, dor!,
e em que chorava as lágrimas do desespero”.
Alexandre Dumas registra que “Esta passagem é intencionalmente coberta
pelo véu de um enigma. A prova disso é que, após tê-la lido, reportei-me a
Garibaldi: “Leia isto, caro amigo, esta passagem não me parece clara”. Ele o
fez e, passado um instante, suspirou e respondeu-me: “Isto terá de ficar
assim”.
Quer dizer, quando Garibaldi poderia esclarecer sobre o primeiro marido de
Anita e até desancá-lo mostrando sua real faceta, preferiu a omissão, inclusive
ressaltando que era ele um inocente, o que depõe a favor do Manoel.
Se ele fosse um bêbado, um ausente, um marido ciumento e até violento
porque Garibaldi não o demostrou?
Paulo Markun em seu livro “Anita Garibaldi – Uma Heroína Brasileira” ressalta
que o primeiro casamento de Anita sempre foi um tabu. E que os descendentes dela
até a década de 1970 desconheciam o fato.
Diz Markun que na primeira versão das memórias de Garibaldi, em 1850,
publicada em inglês por Theodore Dwight, o general se recrimina por ter tirado
Anita de seu lar, dizendo que lamentava tê-la “levado de sua pacífica cidade
natal para cenas de perigo, fadiga e sofrimento. Rezei por perdão, ao refletir
que cometera o pecado de tê-la tirado do seu lar”.
Qual o destino de Manoel?
Mas, afinal, o que foi feito do Manuel Duarte de Aguiar? Isso ninguém sabe. Qual
seu destino? Como foi sua morte? Seu nome simplesmente desapareceu na poeira dos tempos.
Eis outro enigma nessa história toda. Novamente os diversos autores
preferiram as conjecturas, as deduções do destino de Manoel Duarte de Aguiar, mesmo
porque não foram encontrados pelos pesquisadores e historiadores que se
debruçaram sobre o tema, qualquer documento ou comprovação.
Markun diz que é um mistério a localização de Manoel quando do encontro
de Anita e Garibaldi.
“Teria sido preso e morto pelos homens de Garibaldi? Saíra da cidade com
as tropas imperiais? Abandonara Anita? Estava entrevado no hospital de
campanha?”.
E ressalta: “Cada história tem seus defensores e seus críticos, sem que
haja qualquer informação documentada sobre o paradeiro de Manoel Duarte de
Aguiar”.
Ruben Ulysséa registra: “Talvez Aninha não tivesse lamentado quando,
pouco antes da chegada das forças de Canabarro, a Guarda Nacional foi chamada
às armas e Manoel Duarte foi mobilizado. Pouco tempo depois ele seguia com as tropas
retirantes do coronel Vilas Boas para o Morro dos Cavalos onde, segundo consta,
pereceu, sem nunca mais ter voltado à Laguna”.
Lindolfo Collor em sua obra “Garibaldi e a Guerra dos Farrapos” informa
que Manoel “Tomou posição ao lado dos legalistas, ou mais exatamente, não tomou
posição alguma: deixou-se ficar onde já estava. Para que mudar? De política não
entendia nem queria saber”.
Com a entrada dos revolucionários e os editais conclamando à Guarda
Nacional, “lá se fora o sapateiro rumo do quartel; e dali, com a fuga de
Vilas-Boas para o Morro dos Cavalos”.
O incansável pesquisador Rau buscou em livros de óbitos de várias
localidades o registro da morte de Manoel, nada tendo encontrado.
É um enigma para pesquisadores e historiadores o destino de Manoel
Duarte de Aguiar, o primeiro marido de Ana Maria de Jesus Ribeiro, que se
tornou posteriormente com toda a glória a nossa Anita Garibaldi, Heroína de Dois Mundos.