Como tantos
viajantes que chegaram na Laguna desde sua fundação, ele também aqui aportou
num dia qualquer de um ano que se perdeu no tempo. Aqui chegou e se
deixou ficar.
Entendia de mar, lua, marés e embarcações, porque logo foi visto a bordo e pilotando uma velha canoa
de convés que adquiriu.
Era de pouca
conversa, mas educado. Findo o trabalho diário das primeiras horas da manhã e tardes,
encostava-se à parede de alguma casa comercial ou sentava-se em algum caixote de
madeira no cais ou no convés de sua embarcação.
Logo punha-se a
tocar com um arco desconhecidas melodias numa espécie de violino rústico, uma Rabeca de
poucas e gastas cordas, de origem árabe e conhecida desde a Idade Média.
Por causa do instrumento musical que sempre o acompanhava, recebeu uma alcunha como sobrenome e passou a ser conhecido como Felipe.
Felipe da Rabeca.
Uma foto rara
Sempre quis
escrever sobre esse personagem popular que conheci pelos relatos de meu pai em
nossas conversas sobre o passado da Laguna, ouvinte atento que sempre fui.
Felipe da
Rabeca com seu inseparável instrumento musical. Ao fundo, ancorada nas águas da lagoa, sua canoa de convés,
instrumento de trabalho e moradia. |
Felipe da Rabeca existiu na Laguna, entre tantos outros que por aqui passaram.
Personagens que o lagunense José Bessa
denominou de “Anti-heróis anônimos que em certa medida exprimem a alma coletiva, ensinam
verdade humana abeberada na fonte”.
Seres humanos com seus dramas e infelicidades,
suas manias, vícios e psicoses.
Mas para escrever sobre Felipe da Rabeca me
faltava uma foto ou desenho, uma referência visual que me ajudasse a compor o
personagem.
Até que, há alguns meses, fui presenteado por um amigo com
algumas antigas fotografias, preciosos registros inéditos da gente e paisagens da nossa Laguna.
E para minha surpresa, lá estava no velho álbum a foto do
Felipe da Rabeca, tendo ao fundo, ancorada nas águas da nossa Lagoa Santo Antônio dos Anjos, sua velha canoa
de convés.
Descrição física
O lagunense José
Bessa que o conheceu, escreveu numa crônica que Felipe da Rabeca era um
tipo galego, alourado, cabelos ralos e ruivos.
Os olhos eram
azulados, barba e cavanhaque, com bigode já meio branqueado cobrindo o lábio superior. Era alto e
magro.
Quando chegou na
Laguna no início da década de 1920, aparentava ter 40 anos de idade. Aqui viveu por mais
30 anos.
Já o músico e
maestro Agenor Bessa testemunhou que Felipe da Rabeca cheirava maresia, lenha
queimada e peixe assado na brasa. Um cheiro próprio, forte, característico.
Andava quase
sempre descalço e quando se punha a tocar a Rabeca, calçava um velho par de
tamancos com o qual fazia a marcação da canção executada.
O repertório era
curto, composto pelo Hino da Grécia e por alguns maxixes.
Meu pai que também o
conheceu na infância, contava que as crianças da época juntavam moedas de réis e
davam ao músico para ouvi-lo executar alguns acordes. As crianças o chamavam de "Felipe da Rubeca".
Assim como
outros canoeiros da época, nos dias mais frios Felipe da Rabeca punha
um poncho sem mangas, de cor cinza e na cabeça um chapéu côco, na cor preta, estilo Carlitos.
A vestimenta
servia também como cobertor quando se deitava no porão de sua embarcação.
Guerras e
revoluções
A verdadeira origem
desse forasteiro era desconhecida. Quando lhe perguntado, não respondia,
desconversava ou silenciava.
O pessoal conjecturou.
Teria vindo do exterior, clandestino a bordo de algum porão de navio.
Ou pelos seus andrajos
seria um caminhante percorrendo quilômetros em busca de um destino.
Uma pequena nota
publicada no jornal O Albor na segunda década do século XX, afirma que a
Pátria de Felipe da Rabeca era a velha Grécia, “onde era graúdo”.
Por causa de uma
guerra havida naquele país, Felipe perdeu todo seu patrimônio. Emigrou então para o Brasil e
no Rio Grande do Sul “virou dono de gados, cavalos, além de mascatear pelos sítios,
tendo um bom padrão de vida”.
Com a Revolução
Federalista de 1893, tudo perdeu pela segunda vez em sua vida.
O motivo? Foi denunciado
como contrário ao regime republicano recém proclamado.
Era presidente do
Brasil o militar Floriano Peixoto, chamado Marechal de Ferro. Muitas
perseguições e mortes pelo país.
Felipe da Rabeca,
um homem acuado pelas guerras e revoluções, veio para Laguna a procura de uma vida
nova. Do recomeço. Em busca de paz e sossego.
Em nossa cidade
adquiriu, com o pouco dinheiro que lhe restou, uma velha canoa de convés para
transporte de produtos, tornando-se seu sustento e refúgio.
Com ela
transportava variadas mercadorias do outro lado da Lagoa, da zona ribeirinha,
para vender no velho cais da Laguna, nas Docas do Mercado Público.
Trazia quase que
diariamente para comercializar aqui no centro da cidade, achas de lenha de
camboim, sacas de farinha de mandioca produzida por pequenos engenhos então existentes,
um pouco de feijão, hortaliças e frutas como a banana verde de vez e a laranja-açúcar.
A canoa de convés
Essa embarcação
era assim chamada porque seu espaço interior era totalmente coberto por convés
de madeira, uma superfície do barco, com duas aberturas fechadas por escotilhas
quadradas. Uma delas ficava na proa e outra na popa.
O porão era
utilizado para transporte de carga e improvisado como alojamento, dormitório.
Utilizava-se a
vela quando os ventos sopravam. Na ausência dele, remos e longas varas de bambu
que iam se fincando e empurrando como tração no leito lodoso das lagoas.
As refeições
As refeições de
Felipe da Rabeca, assim como de todos seus colegas canoeiros, eram feitas a
bordo da própria embarcação, usando um mesmo modelo de fogão rudimentar em praticamente
todas as canoas que ali aportavam.
Chamava-se
fogão-jacaré.
Era uma lata de
querosene com duas aberturas. Uma delas, maior, na parte superior e outra em
uma das laterais.
Sobre a parte de
cima colocava-se uma grelha e abaixo dela a lenha que ficava em sua maior parte
para o lado de fora e ia sendo empurrada à medida que consumida.
Em muitas canoas
se via dependuradas nos cordames das velas, várias postas de peixe escalados,
salgados, secos pelo sol.
O peixe, por ser
abundante e barato, sempre foi o principal prato à mesa do pobre, acompanhado
do inseparável pirão d’água de farinha de mandioca. Com os canoeiros não era
diferente.
Outro de seus alimentos era o pão com banha, além do mate.
O almoço e o
jantar eram compostos quase sempre de peixe frito ou assado cujo cheiro impregnava
todo o lugar, chegando em dias de vento sul a penetrar os interiores dos
sobrados da rua Gustavo Richard e da rua Raulino Horn.
Um café saboroso
Felipe da Rabeca
usava de um jeito especial no preparo de seu café matinal.
No fogão à lenha
da embarcação fervia numa velha lata a água buscada na Fonte da Carioca
Após alguns
minutos de fervura colocava no recipiente a ponta em brasa, soprada as cinzas, de uma lenha
retirada de seu fogão.
Imediatamente o
pó de café, igualmente colocado na lata, se assentava no fundo pelo método de
decantação.
Felipe da Rabeca
se servia numa velha e lascada caneca esmaltada.
Era (e ainda é) chamado café
de tição, muito usado por tropeiros.
O sabor era inigualável, o cheiro ia longe, atravessava esquinas, frestas,
frinchas da velha Laguna.
À noite uma
pomboca (lamparina) de querosene iluminava pobremente o ambiente com sua luz
bruxuleante.
Dormia-se cedo
nas canoas das Docas, embalado pelo murmurar das pequenas ondas que açoitavam
os costados das embarcações.
O
desaparecimento
Como era rotina,
no entardecer de um dia qualquer a canoa de Felipe da Rabeca foi vista saindo
das Docas em busca de produtos para retornar bem cedo no amanhecer do dia
seguinte para comercialização.
A canoa foi
vista partindo com Felipe a bordo, mas no outro dia ambos não retornaram. Seu lugar
reservado ficou desocupado no local.
Algum atraso, um
imprevisto qualquer, pensaram os que o conheciam.
Os dias passaram.
E a vaga da canoa continuava ociosa.
Amigos e conhecidos saíram indagando
pela região ribeirinha, Os Ribeirões Grande e Pequeno, Parobé, Pescaria Brava, Imaruí...
Houve quem, em sua busca, repetisse
a rota usual pelas Lagoas de Santo Antônio, Imaruí e Mirim.
Mas a verdade é
que Felipe da Rabeca e sua embarcação nunca mais foram vistos.
Registro do
desaparecimento do músico e canoeiro foram feitos na delegacia de polícia.
Mas, Felipe da Rabeca
não foi encontrado.
Mistério
Eis outro mistério
anotado no extenso livro dos mistérios da nossa Laguna.
Alguns
especularam à época que a canoa poderia ter afundado nas águas calmas da Lagoa. Ou carregada
pelas marés e ventos saído Barra da Laguna afora, desaparecendo nas águas
profundas do Atlântico.
Passados mais
alguns dias, outro canoeiro com sua embarcação ocuparam o lugar da lendária canoa
do Felipe da Rabeca.
Era a vida, que
não comporta vácuo, seguindo sua rotineira e inevitável trajetória de um dia após o outro, onde ninguém é insubstituível.
O vento traz a
saudade
Tempos depois
houve quem jurasse que em alguns finais de tardes modorrentas da velha Laguna,
com seus lindos pores do sol a colorir as águas e refletir nos velhos casarios
caiados de branco, acordes foram ouvidos vindos de longe, de muito longe, do infinito.
Os conhecedores
de música disseram que os sons pareciam produzidos por três cordas de um velho
violino, a mi, sol e si, tocadas pelo arco do vento nordeste, com o bater de um
tamanco ao fundo marcando o compasso.
O som ensinava a
quem o queria ouvir, que tudo é efêmero, que somos passageiros de uma viagem
universal e que a vida é uma saudade infinita.
E nessas ocasiões um refrão roufenho
parecia ecoar pelos ares da Laguna:
“O Felipe da Rabeca
A Rabeca do
Felipe...”.
Que história linda Valmir, que personagem rico, daria um filme-arte. Não conhecia a história desse personagem, um músico sensível, quantas histórias não teria para contar de guerras e revoluções.
ResponderExcluirLaguna e suas histórias, sua gente, quantas pessoas que aqui passaram e moraram hein Valmir?
ResponderExcluirEssas histórias que resgatas merecem um livro, sem menosprezar o Blog, é claro. Mas para se guardar com carinho e ler em salas de aula e bibliotecas para alunos. Se é que ainda se interessam por isso.
Mas me emocionei com o relato. Será que o Felipe foi embora? Ou teria morrido nas águas das nossas lagoas? Realmente um mistério.
Então, Valmir, sobre a figura lendária do Felipe da Rabeca, tenho o primeiro contato, agora, pela tua brilhante narrativa. Como reminiscência da minha infância-juventude na Laguna, me veio à mente a recordação de uma outra personagem, outro barqueiro, que também habitou o nosso cais: um homem negro, pés descalços, soturno, alto, magro, de certa idade, que usava roupas simples e chapéu, o único tripulante de uma canoa de convés de nome Admiroza, sim, com zê. Abraço
ResponderExcluirValmir, tu contando assim, visualizei as cenas e até me deu vontade de sentar ali junto às canoas para comer um peixe assado e tomar esse café de tição. Rapaz, senti até o cheiro, juro.
ResponderExcluirLaguna e seus personagens de tantas histórias. Gostei.
Por coincidência ganhei de uma amiga o livro de José Bessa, que fala neste personagem.
ResponderExcluir"O vento traz saudades" . Perfeito!
ResponderExcluirBoa noite.
ResponderExcluirBelo texto, muito bem escrito.
Personagem interessante, não sabia da sua existência.
Saber tocar um instrumento é muito bom, a música alivia a alma. E com certeza ajudou muito essa pessoa na sua caminhada.
Lindo esta história de
ResponderExcluirFelipe da
Rebeca parabéns
Valmir grande abraço adorei,
Zair
Que bacana saber dessas histórias.
ResponderExcluirValmir... você sempre nos "lembra" de casos e figuras da Laguna de outrora. O tema relacionado com o Felipe da Rabeca, este personagem até certo ponto misterioso que tinha como companheiros seu instrumento musical (rebéca) e o instrumento de trabalho a sua grande canoa de convés, que como tantas outras transporte de mercadorias entre as comunidades da Lagoa de Santo Antônio (que banha nossa cidade) e o Mercado Público... acabou sendo uma figura impar neste meio marítimo. Meu sogro (o Seo Luiz Nicolazzi Jr) que nasceu na Laguna em 1915 e faleceu aos 102 anos... conheceu muito bem o Felipe e me assegurou serem verdadeiras as histórias que comentavam sobre esta figura.
ResponderExcluirGrande abraço do Adolfo Bez Filho - Joinville / SC.
Que linda história. Bela narrativa. Adorei.
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