terça-feira, 24 de julho de 2018

A polêmica construção da primeira ponte ferroviária de Cabeçuda

"Quem vem além, no horizonte?
Que rebentou desse monte
Em carreira tão veloz,
Parece enorme serpente
Sibilante, monstro ingente
Raivoso, direto a nós
oh? Pavor estranho
oh? Fantástica visão
da cabeça sae-lhe fumo
Da boca aceso carvão"
(A Via Férrea - Jornal lagunense A Verdade de 11 julho de 1880).

Um fato curioso e polêmico que se perdeu nas brumas do tempo e da história, aconteceu em nossa cidade quando da construção da Estrada de Ferro Thereza Christina. Tudo por causa da não inclusão de um vão móvel na ponte Ferroviária de Cabeçuda para passagem de embarcações.
Os fatos a seguir narrados se deram no recuado ano de 1881.
A ponte Ferroviária de Cabeçuda em 1910. Acervo Marega.
Walter Zumblick diz em seu livro “Teresa Cristina A Ferrovia do Carvão”, que “Em 7 de março de 1876, organizou-se na praça de Londres uma companhia com o título “The Donna Thereza Christina Railway Company Limited”, que foi autorizada a funcionar no Brasil pelo Decreto nº 6.343, de 20 de setembro de 1876".
Em 18 de julho de 1882 pela primeira vez um trem percorreu o trajeto Imbituba-Laguna. E em 1º de setembro de 1884 a ferrovia foi inaugurada oficialmente.
Sem dúvida alguma a ferrovia deu uma propulsão extraordinária ao desenvolvimento, ao progresso da região sul e, em particular aos municípios de Imbituba, Laguna e Tubarão. A grandiosa obra também beneficiou todas as áreas que compunham as regiões de extração de mineração, situadas nas fraldas da Serra do Rio do Rastro.

Início da Estrada de Ferro
Numa correspondência publicada no jornal A Verdade, de 9 de janeiro de 1881 e endereçada ao ministro Buarque Macedo, dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, o engenheiro Fiscal da Estrada de Ferro, João Carlos Greenhalgh, comunica que em 18 de dezembro de 1880 foram iniciados oficialmente os trabalhos de construção da Estrada.
Anúncio da Estrada de Ferro no jornal A Verdade de
16 de janeiro de 1881, para compra de tábuas.
Os primeiros engenheiros ingleses com seus mapas e projetos chegaram a nossa região dez dias depois, em 28, conforme noticiou o jornal A Verdade, de 1º de janeiro de 1881.
Seus nomes: H. Gale (engenheiro-chefe), J.E. Hartley (engenheiro representante da companhia), Frederico Berry, Charles Perry, C. Roberts e F. Somers. Junto veio também James Perry, capitalista em Londres e contratador dos trabalhos da estrada, conforme informa o próprio jornal.

Os trabalhos da ferrovia começaram por Imbituba
Os serviços se davam a partir do porto de Imbituba (um simples trapiche que será melhorado e ampliado) local em que chegavam as ferragens, vagões e locomotivas. Uma estação e oficina também serão construídas por lá, então uma simples vila de pescadores. Já o escritório da “companhia”, como era denominado pelos habitantes, foi instalado na Laguna.  No auge da construção da ferrovia a Companhia chegou a contar com cerca de 500 empregados.
Conjuntamente com a indenização aos proprietários e preparação do terreno e colocação dos trilhos, passou-se a construção de uma ponte, ou viaduto, como era então chamado, na Cabeçuda, sobre o canal das Laranjeiras, na Lagoa Santo Antônio dos Anjos.
Obra arrojada, avançada para a época, "com os férreos pilares de pontas de chumbo encaracoladas à maneira de saca-rolhas gigantes que o sistema Mitchell enroscou no lodoso leito daquele mar parado".
Uma locomotiva passa exatamente no local onde foi instalado o vão móvel.
Acervo Museu Ferroviário de Tubarão.
A falta de um vão móvel na ponte gera a polêmica
Pois foi justamente a construção da ponte que gerou uma grande polêmica, inflamou a população lagunense, principalmente comerciantes, políticos, armadores, pescadores e pequenos agricultores.
O assunto ganhou as primeiras páginas dos jornais da cidade, debates acalorados na Câmara de vereadores, além de intensa troca de correspondência entre autoridades da nossa cidade, da Província, Governo Imperial e os engenheiros ingleses que projetaram e construíram a estrada de ferro.

A título de informação, João Rodrigues Chaves era presidente (governador) da Província de Santa Catarina; Francisco Fernandes Martins era o superintendente (prefeito) municipal da Laguna e Marcolino Cabral o presidente da Câmara de vereadores da Laguna.

Ponte foi paralisada em seu início
Com um comprimento de 1.480 metros, a construção da ponte foi iniciada com projeto, planos e ferragens confeccionadas na Inglaterra, mas logo foi paralisada.
Tudo porque se descobriu que no projeto não constava um vão móvel para a passagem de canoas e iates que diariamente faziam o percurso entre o centro da cidade e seu antigo porto e o norte de Cabeçuda, como as regiões de Pescaria Brava, Vila Nova, Mirim e Imaruí.
Os engenheiros ingleses defendiam que o vão móvel não era necessário, que a navegação que passava no local era de pouca importância, feita por canoas e um diminuto número de iates. Afirmavam também que se fossem modificadas as respectivas mastreações das embarcações elas poderiam continuar nos serviços de navegação, já que a ponte teria ficado com 4 metros de altura.
O representante da Companhia, engenheiro J. E. Hartley numa correspondência datada de 7 de abril de 1881 contestava o vão móvel:

“(...) Um vão móvel é sempre uma fonte de perigos para os trens que passam e rquer constante cuidado e vigilância para prevenir acidentes. A Companhia certamente objetaria colocar um vão móvel na Cabeçuda; principalmente ela construindo uma estação à margem da Lagoa a fim de favorecer as freguesias situadas na margem da Lagoa.
Julgo que há este tempo, uma grande parte do material metálico está encomendada para a ponte, na Inglaterra e qualquer mudança traria demora e aumentaria a despesa”.

O assunto fervia na Laguna
Enquanto isso a Laguna se mexia. Reuniões e mais reuniões. Protestos, discursos na Câmara. Nos cafés e bares do centro da cidade o assunto dominava em acalorados debates.
Em meados de maio (13) de 1881, uma correspondência (representação) com assinaturas “de cento e tantos comerciantes, lavradores e outros cidadãos residentes na Laguna” se mostravam contra a decisão de construir a ponte sem o vão móvel. O documento foi enviado às autoridades do estado e à capital do Império, o Rio de Janeiro.
E o caso vai assim se arrastando pelos meses seguintes, com as obras da ponte paradas até a nomeação pelo governo imperial do engenheiro Nicolau Viriato Chaves Barcellos para estudar detalhadamente o caso e dar um parecer.
Um iate com seus mastros passa sob a ponte, com seu vão móvel recolhido. Por causa
desse tipo de embarcação nas nossas lagoas, e que eram muitas, é que houve o protesto na Laguna.
Acervo Marega
Corte Imperial decide pelo vão móvel na ponte
Um mês depois, em 15 de junho, sai o resultado a favor do vão móvel e logo o governo imperial comunica a decisão. Há festa na Laguna, certamente com muitos fogos, como de praxe:

“À vista do parecer apresentado pelo engenheiro Viriato deve a ponte ser construída próximo às Laranjeiras na parte mais profunda do canal atual, tendo uma trave giratória de 20 metros de vão livre, sendo feita a parte fixa com as precisas precauções de modo a evitar a obstrução do mencionado canal, para dar franca entrada e saída às embarcações, respeitando-se assim os direitos adquiridos pela navegação local, como reclamaram a presidência desta Província, e a Câmara Municipal da cidade da Laguna, além de uma comissão de pessoas qualificadas desta Corte e grande número de habitantes da província, interessados na questão”.

Decisão pelo vão móvel é contestada
Mesmo após a decisão da Corte houve ainda protestos por parte dos engenheiros da Estrada de Ferro, tentando alterá-la. Em carta ao engenheiro Fiscal Greenhalgh, o engenheiro J.E. Hartley representante da Companhia contestou a decisão e argumentou:

"Peço sem demora para protestar contra esta decisão, e para informar a V.Sª que não posso aceitar por parte da Companhia a responsabilidade de empregar uma viga móvel nesse viaduto, a que querem obrigar de uma maneira tão arbitrária e contrária aos decretos em que foi baseada a concessão desta ferrovia, pelas razões seguintes:

1) Uma viga móvel n'um Viaduto de tamanho comprimento deverá sempre ser uma fonte de perigo.
2) A posição do Viaduto, situado como está n'uma estreita garganta diretamente exposta aos ventos prevalecentes, NE & SO obstará em muitas ocasiões trabalhar-se a viga móvel, e por consequência torna-se inútil quando for preciso.
3) O custo adicional será muito grande.
4) Em consequência da demora da construção que afetará a terminação dos trabalhos dentro do prazo estipulado, o Viaduto estando situado no 32º quilômetro, o transporte do material será necessariamente retardado.
5) Como o maior tráfego virá do distrito acima do viaduto é importante para os interesses da Companhia que não haja demora na abertura da porção da Linha entre Cabeçuda e Tubarão.
6) O material metálico está todo encomendado e está agora em viagem para aqui.
7) Impõe a Companhia uma despesa adicional de custeio, visto que instruídos e experimentados homens devem estar encarregados dia e noite.
8) A construção da ponte pode ser começada economicamente do lado de Laranjeiras onde se acha o canal, e a construção terá de ser parada até que desenhos estejam preparados pelo engenheiro Consultivo, aprovados pelo Governo do Brasil e devolvido à Europa, o mecanismo e material metálico fabricado e remetido para cá, trazendo um período de demora de perto de 12 meses, e neste ínterim sofrerão todos os trabalhos na porção da Linha acima.
Todas as demoras e despesa precedentes serão postas n'uma Companhia de estrada de ferro de não pequena importância, por nenhuma outra razão senão a de acomodar tão pequenos barcos como os que V.Sª já explicou a S. Exª e que usam essa via marítima.
Tenho a honra de pedir uma resposta com brevidade visto que os trabalhos deste Viaduto estão parados por ordem de V.Sª até que o novo plano possa ser preparado e aprovado".
Trem passando pela ponte, sobre o vão móvel. Museu Ferroviário Tubarão.
Navios com ferragens afundam em Imbituba
Conta o historiador Walter Zumblick em sua obra já mencionada, que “contra o vão fixo conspiravam, além do comércio da cidade, até as próprias forças da natureza!!”. E explica que os dois navios que traziam material da Inglaterra para a ferrovia, e em especial para a ponte,  por causa do forte vento nordeste foram à praia de Imbituba em 24 de outubro de 1881, com perda total. Chamavam-se J. Greaves e Pendle Hill.

O sistema mecânico do vão móvel ainda está lá
Enfim, o vão na ponte Ferroviária de Cabeçuda foi construído. Não de maneira giratório como sugerido pelo engenheiro Viriato, mas com outra solução técnica. Certamente não deram este gostinho ao engenheiro contratado pela Corte que deu seu parecer favorável ao vão móvel.
Aviso de 24 de junho de 1884,  portanto dois meses antes da inauguração Estrada de Ferro ,
assinado pelo representante da Companhia, fornecendo os dias e horários da abertura do vão móvel. 
O sistema funcionava assim: os trilhos e sua base também de ferro eram recolhidos por um sistema de engrenagens e manivelas a uma outra base fixa de pedras. Isso em determinados dias e horários para a passagem de embarcações, conforme demonstra o quadro acima.
O local e o mecanismo ainda estão lá na velha ponte Ferroviária de Cabeçuda, tombada pelo decreto municipal nº 34 de 3 de novembro de 1977. E podem ser observados, mesmo passados 137 anos de uma polêmica que agitou a população da cidade, as autoridades e os jornais e mexeu com os interesses econômicos e sociais de nossos antepassados.

Um comentário:

  1. Caro Valmir,

    Novamente você nos surpreende com um fato histórico da nossa Laguna, agora focando num detalhe da construção da primeira ponte da estrada de ferro, com a qual foi possível a passagem dos trens de carga e passageiros no trecho entre Tubarão, Laguna e Imbituba.
    Sabemos que o objetivo principal era trazer o carvão da “serra”, num local próximo onde hoje se situa o município de Lauro Müller, para que o mesmo fosse embarcado no porto (!!) de Imbituba. Entretanto, já era visível que este meio de transporte iria modificar tudo até então utilizado, ou seja, cavalo, carroças/carroções, canoas, barcos, iates... permitindo que o processo relacionado com o transporte se tornasse mais rápido, confortável e com um custo mais acessível. Entretanto, como tudo acaba tendo seus prós e contras, a navegação que naquela época dependia muito dos ventos, acabou tendo na ponte de ferro um sério obstáculo... já que os mastros das embarcações iriam “bater” na ponte. Assim, começou o conflito de interesses que resultou na necessidade de ajustar o projeto da ponte ao intenso movimento marítimo entre as lagoas de Mirim, Imaruí e a de Santo Antônio.
    A sua matéria nos trás diversos fatos e desdobramentos ocorridos a partir do imprevisto (!!), pela necessidade de ajustar o projeto da ponte, em especial com toda dificuldade técnica que foi incluir o “vão móvel” na extremidade da ponte que fica na região de Laranjeiras.
    Finalizando, desejo comentar que busco contribuir com algum “elemento novo” e para tanto estou pesquisando no meu acervo de jornais antigos da época da construção e de alguns anos depois, para ver se existe algum comentário sobre este assunto tão polêmico naquela época e, que de certa forma ainda hoje nos chama a atenção.
    Grande abraço do Adolfo Bez Filho (Joinville / SC)

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