sábado, 28 de setembro de 2024

Felipe da Rabeca, músico e canoeiro, morador das Docas do cais da Laguna

 
Como tantos viajantes que chegaram na Laguna desde sua fundação, ele também aqui aportou num dia qualquer de um ano que se perdeu no tempo. Aqui chegou e se deixou ficar.
Entendia de mar, lua, marés e embarcações, porque logo foi visto a bordo e pilotando uma velha canoa de convés que adquiriu.
Era de pouca conversa, mas educado. Findo o trabalho diário das primeiras horas da manhã e tardes, encostava-se à parede de alguma casa comercial ou sentava-se em algum caixote de madeira no cais ou no convés de sua embarcação.
Logo punha-se a tocar com um arco desconhecidas melodias numa espécie de violino rústico, uma Rabeca de poucas e gastas cordas, de origem árabe e conhecida desde a Idade Média.
Por causa do instrumento musical que sempre o acompanhava, recebeu uma alcunha como sobrenome e passou a ser conhecido como Felipe. Felipe da Rabeca. 

Uma foto rara
Sempre quis escrever sobre esse personagem popular que conheci pelos relatos de meu pai em nossas conversas sobre o passado da Laguna, ouvinte atento que sempre fui.

Felipe da Rabeca com seu inseparável instrumento musical. Ao fundo, ancorada nas águas da lagoa, sua canoa de convés, instrumento de trabalho e moradia.

Felipe da Rabeca existiu na Laguna, entre tantos outros que por aqui passaram.
Personagens que o lagunense José Bessa denominou de “Anti-heróis anônimos que em certa medida exprimem a alma coletiva, ensinam verdade humana abeberada na fonte”.
Seres humanos com seus dramas e infelicidades, suas manias, vícios e psicoses.
Mas para escrever sobre Felipe da Rabeca me faltava uma foto ou desenho, uma referência visual que me ajudasse a compor o personagem.
Até que, há alguns meses, fui presenteado por um amigo com algumas antigas fotografias, preciosos registros inéditos da gente e paisagens da nossa Laguna.
E para minha surpresa, lá estava no velho álbum a foto do Felipe da Rabeca, tendo ao fundo, ancorada nas águas da nossa Lagoa Santo Antônio dos Anjos, sua velha canoa de convés. 

Descrição física
O lagunense José Bessa que o conheceu, escreveu numa crônica que Felipe da Rabeca era um tipo galego, alourado, cabelos ralos e ruivos.
Os olhos eram azulados, barba e cavanhaque, com bigode já meio branqueado cobrindo o lábio superior. Era alto e magro.
Quando chegou na Laguna no início da década de 1920, aparentava ter 40 anos de idade. Aqui viveu por mais 30 anos.
Já o músico e maestro Agenor Bessa testemunhou que Felipe da Rabeca cheirava maresia, lenha queimada e peixe assado na brasa. Um cheiro próprio, forte, característico.
Andava quase sempre descalço e quando se punha a tocar a Rabeca, calçava um velho par de tamancos com o qual fazia a marcação da canção executada.
O repertório era curto, composto pelo Hino da Grécia e por alguns maxixes.
Meu pai que também o conheceu na infância, contava que as crianças da época juntavam alguns réis e davam ao músico para ouvi-lo executar alguns acordes. Algumas crianças o chamavam de Felipe da Rubeca.
Assim como outros canoeiros da época, nos dias mais frios Felipe da Rabeca punha um poncho sem mangas, de cor cinza e na cabeça um chapéu coco, preto, estilo Carlitos.
A vestimenta servia também como cobertor quando se deitava no porão de sua embarcação.

Guerras e revoluções
A verdadeira origem desse forasteiro era desconhecida. Quando lhe perguntado, não respondia, desconversava ou silenciava.
O pessoal conjecturou. Teria vindo do exterior, clandestino a bordo de algum porão de navio.
Ou pelos seus andrajos seria um caminhante percorrendo quilômetros em busca de um destino.
Uma pequena nota publicada no jornal O Albor na segunda década do século XX, afirma que a Pátria de Felipe da Rabeca era a velha Grécia, “onde era graúdo”.
Por causa de uma guerra havida naquele país, Felipe perdeu todo seu patrimônio. Emigrou então para o Brasil e no Rio Grande do Sul “virou dono de gados, cavalos, além de mascatear pelos sítios, tendo um bom padrão de vida”.
Com a Revolução Federalista de 1893, tudo perdeu pela segunda vez em sua vida.
O motivo? Foi denunciado como contrário ao regime republicano recém proclamado.
Era presidente do Brasil o militar Floriano Peixoto, chamado Marechal de Ferro. Muitas perseguições e mortes pelo país.
Felipe da Rabeca, um homem acuado pelas guerras e revoluções, veio para Laguna a procura de uma vida nova. Do recomeço. Em busca de paz e sossego.
Em nossa cidade adquiriu, com o pouco dinheiro que lhe restou, uma velha canoa de convés para transporte de produtos, tornando-se seu sustento e refúgio.

Início da década de 1940, nas Docas do cais do velho Porto da Laguna. Dezenas de canoas lado a lado comercializam os produtos vindos do interior do município, como lenha, leite, frutas como laranja e banana, hortaliças, farinha de mandioca e pescados.

Com ela transportava variadas mercadorias do outro lado da Lagoa, da zona ribeirinha, para vender no velho cais da Laguna, nas Docas do Mercado Público.
Trazia quase que diariamente para comercializar aqui no centro da cidade, achas de lenha de camboim, sacas de farinha de mandioca produzida por pequenos engenhos então existentes, um pouco de feijão, hortaliças e frutas como a banana verde de vez e a laranja-açúcar.

A canoa de convés
Essa embarcação era assim chamada porque seu espaço interior era totalmente coberto por convés de madeira, uma superfície do barco, com duas aberturas fechadas por escotilhas quadradas. Uma delas ficava na proa e outra na popa.
O porão era utilizado para transporte de carga e improvisado como alojamento, dormitório.
Utilizava-se a vela quando os ventos sopravam. Na ausência dele, remos e longas varas de bambu que iam se fincando e empurrando como tração no leito lodoso das lagoas.

As refeições
As refeições de Felipe da Rabeca, assim como de todos seus colegas canoeiros, eram feitas a bordo da própria embarcação, usando um mesmo modelo de fogão rudimentar em praticamente todas as canoas que ali aportavam.
Chamava-se fogão-jacaré.
Era uma lata de querosene com duas aberturas. Uma delas, maior, na parte superior e outra em uma das laterais.
Sobre a parte de cima colocava-se uma grelha e abaixo dela a lenha que ficava em sua maior parte para o lado de fora e ia sendo empurrada à medida que consumida.
Em muitas canoas se via dependuradas nos cordames das velas, várias postas de peixe escalados, salgados, secos pelo sol.
O peixe, por ser abundante e barato, sempre foi o principal prato à mesa do pobre, acompanhado do inseparável pirão d’água de farinha de mandioca. Com os canoeiros não era diferente.
Outro de seus alimentos era o pão com banha, além do mate.
O almoço e o jantar eram compostos quase sempre de peixe frito ou assado cujo cheiro impregnava todo o lugar, chegando em dias de vento sul a penetrar os interiores dos sobrados da rua Gustavo Richard e da rua Raulino Horn. 

Um café saboroso
Felipe da Rabeca usava de um jeito especial no preparo de seu café matinal.
No fogão à lenha da embarcação fervia numa velha lata a água buscada na Fonte da Carioca 
Após alguns minutos de fervura colocava no recipiente a ponta em brasa, soprada as cinzas, de uma lenha retirada de seu fogão.
Imediatamente o pó de café, igualmente colocado na lata, se assentava no fundo pelo método de decantação.
Felipe da Rabeca se servia numa velha e lascada caneca esmaltada.
Era (e ainda é) chamado café de tição, muito usado por tropeiros. 
O sabor era inigualável, o cheiro ia longe, atravessava esquinas, frestas, frinchas da velha Laguna.
À noite uma pomboca (lamparina) de querosene iluminava pobremente o ambiente com sua luz bruxuleante.
Dormia-se cedo nas canoas das Docas, embalado pelo murmurar das pequenas ondas que açoitavam os costados das embarcações.

O desaparecimento
Como era rotina, no entardecer de um dia qualquer a canoa de Felipe da Rabeca foi vista saindo das Docas em busca de produtos para retornar bem cedo no amanhecer do dia seguinte para comercialização naquela abertura do cais de granito.
A canoa foi vista partindo com Felipe a bordo, mas no outro dia ambos não retornaram. Seu lugar reservado ficou desocupado no local.
Algum atraso, um imprevisto qualquer, pensaram os que o conheciam.
Os dias passaram. E a vaga da canoa continuava ociosa.
Amigos e alguns conhecidos saíram indagando pela região ribeirinha, Ribeirão, Parobé, Pescaria Brava, Imaruí.
Houve quem, em sua busca, repetisse a rota usual pelas Lagoas de Santo Antônio, Imaruí e Mirim.
Mas a verdade é que Felipe da Rabeca e sua embarcação nunca mais foram vistos.
Registro do desaparecimento do músico e canoeiro foram feitos na delegacia de polícia.
Mas, Felipe da Rabeca não foi encontrado.
Eis outro mistério anotado no extenso livro dos mistérios da nossa Laguna.
Alguns especularam à época que a canoa poderia ter afundado nas águas calmas da Lagoa ou carregada pelas marés e ventos tendo saído Barra da Laguna afora, desaparecendo nas águas profundas do Atlântico.
Passados mais alguns dias, outro canoeiro com sua embarcação ocuparam o lugar da lendária canoa do Felipe da Rabeca.
Era a vida, que não comporta vácuo, seguindo sua rotineira e inevitável trajetória de um dia após o outro, onde ninguém é insubstituível.

O vento traz a saudade
Tempos depois houve quem jurasse que em alguns finais de tarde modorrentas da velha Laguna, com seus lindos pores do sol a colorir as águas e refletir nos velhos casarios caiados de branco, acordes foram ouvidos vindos de muito longe, do infinito.

A Rabeca do Felipe.

Os conhecedores de música disseram que os sons pareciam produzidos por três cordas de um velho violino, a mi, sol e si, tocadas pelo arco do vento nordeste, com o bater de um tamanco ao fundo marcando o compasso.
O som ensinava a quem o queria ouvir, que tudo é efêmero, que somos passageiros de uma viagem universal e que a vida é uma saudade infinita.
E nessas ocasiões um refrão roufenho parecia ecoar pelos ares da Laguna:
“O Felipe da Rabeca
A Rabeca do Felipe...”.

2 comentários:

  1. Que história linda Valmir, que personagem rico, daria um filme-arte. Não conhecia a história desse personagem, um músico sensível, quantas histórias não teria para contar de guerras e revoluções.

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  2. Geraldo de Jesus28/09/2024, 19:09

    Laguna e suas histórias, sua gente, quantas pessoas que aqui passaram e moraram hein Valmir?
    Essas histórias que resgatas merecem um livro, sem menosprezar o Blog, é claro. Mas para se guardar com carinho e ler em salas de aula e bibliotecas para alunos. Se é que ainda se interessam por isso.
    Mas me emocionei com o relato. Será que o Felipe foi embora? Ou teria morrido nas águas das nossas lagoas? Realmente um mistério.

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