sexta-feira, 12 de junho de 2020

Se milagres desejais... Santo Antônio e as cartas das moças lagunenses

As tradições nada mais são do que a ciência de um povo, cultura, hábitos, normas e doutrinas que compõe o arcabouço de seu patrimônio imaterial, atravessando gerações.
Pois são as mais diversas as tradições que o povo lagunense pratica ao longo dos anos, em relação ao seu padroeiro Santo Antônio dos Anjos.

Uma delas é que, ao encerrar da festa, os devotos, pós-procissão, colhem as flores do andor. Uma verdadeira relíquia para os fiéis.
Outra tradição, ainda amplamente praticada, é a colocação de bilhetinhos em nichos da imagem, antes de ser conduzida ao altar-mor, alguns dias após as festividades.
Nos bilhetes, os mais variados pedidos, em gesto de esperança e fé do povo.
De todos os santos é bem provável que Santo Antônio seja o mais venerado.
Veio de Portugal para o Brasil com fama de casamenteiro e por aqui se tornou também conhecido.
Além de ser o santo das causas perdidas, a quem o crente recorre no momento de desespero e de procura, através do responso.

A paradinha do Santo
Outra tradição que foi incorporada à cultura local, é a famosa paradinha da imagem do santo.
Dizem os costumes que, se no dia da Procissão o santo der uma paradinha casual defronte a uma casa e nela estiver uma moça solteira, é batata. Casamento na certa, e em breve.
E que ninguém duvide, porque atestam os mais antigos que Santo Antônio dos Anjos já operou verdadeiros milagres por essas bandas, “desencalhando” muitas titias que já eram dadas como casos perdidos.
No entanto, há um porém: se o santo desse a paradinha e não houvesse moça com vistas a matrimônio, morreria uma pessoa ali residente.
Imaginem a torcida. Ou não.
Bem por isso, contam os mais antigos da Laguna, que casais de mais idade ou que não tinham filhas, convidavam sobrinhas, parentes ou moças conhecidas para se postarem nas janelas de suas casas.
Uma forma de fugir a presságios, digamos, funestos. Como se alguém pudesse ludibriar o santo...

O Toc-Toc-Toc na porta da igreja
Outra tradição que ainda se perpetua nos dias atuais, se dá por volta da meia-noite do dia 12 para 13 de junho quando, com a igreja fechada, moças se posicionam defronte à porta frontal e central da matriz, formulando o desejo de encontrar seu príncipe encantado.
Em cada batida na porta o diálogo com o santo, repetido três vezes:
- Toc. Toc. Toc. Santo Antônio, Santo Antônio, se estais dormindo acorda. Se estais acordado, responda pela boca de alguém o nome da pessoa com quem vou me casar.
Nas próximas 24 horas deve se ficar com orelhas em pé, captando as conversas dos outros para ouvir o nome do futuro amado. Não vale diálogos de familiares ou amigas.

A mesma roupa e até peças íntimas
A sempre lembrada Nair Ulysséa, estudiosa que foi das manifestações religiosas em nossa cidade, em sua obra “Três Séculos na Matriz...”, relembra que muitos devotos na Festa de Santo Antônio dos Anjos “prometiam assistir a todas as novenas, com a mesma roupa, para conseguirem o que estavam pedindo ao Santo”.
Há quem fale que algumas pessoas repetiam em todas as noites de trezenas as mesmas peças íntimas.
Qué qué isso minha gente...
O que não se faz...

E continua dona Nair:
“Moças, ao contrário, assistiam a todas as novenas, cada noite com um vestido novo, para casar naquele ano.
Na procissão do Santo, se o andor parasse diante de uma casa, é que casaria, naquele ano, uma moça da família; se, porém, não houvesse moça casadoira na casa, morreria uma pessoa ali residente”.

As três cartas das moças a Santo Antônio
Sobre promessas e esperanças de casamento, encontrei no jornal O Albor, de 13 de junho de 1908, páginas 2 e 3, com o título “Às vezes”, uma história pitoresca e contada de forma humorada.
Nela, sob o pseudônimo de Bento Rosado, o articulista informa que recebia muitas cartas e cartões de moças lagunenses “e algumas velhas”, pedindo que intercedesse junto aos encarregados das festividades para que o Santo parasse defronte as suas casas.
Ele então reproduz três cartas. A leitura é prazerosa e é bem provável que a história tenha sido criada pela mente fértil do articulista. Mas poderia muito bem ter acontecido. Vai saber.
Só atualizei a ortografia para melhor compreensão:

Às vezes
“Vai hoje percorrer as ruas da cidade o Santo Antônio, nosso padroeiro.
Quantos olhares ternos se dirigirão ao miraculoso santo!
Quantos lábios rosados balbuciarão uma prece à sua passagem!
Quanta esperança de um próximo casamento se aninhará no coração de minhas gentis patrícias!
Fosse eu rapaz, tomaria o encargo de, bem na cauda da procissão de hoje, observar sem me denunciar, a posição contrita das mocinhas que desejam casar.
Esta, estará de mãos postas, atirando olhares ternos para o céu e resmungando uma oração adequada ao caso.
Àquela, de joelhos, à passagem do andor, baterá no peito as três pancadas de mea culpa, repetindo: Casamento! Casamento! Casamento!
Diziam os nossos antepassados e afirmam os nossos contemporâneos que, é prenúncio de muitos casamentos, a saída de Santo Antônio à rua.
Esta crença está tão enraizada em nosso meio, que são inúmeros os cartões e cartas que me tem sido dirigidos por diversas moças... e algumas velhas.
Pedem meus bons ofícios junto ao encarregado da festividade, para obter a parada do Santo, em frente às suas casas.
São em tão grande número os pedidos que, para satisfazê-los todos seria preciso cinco dias de procissão.
São dignas de leitura algumas dessas missivas e, como não sou egoísta, vou publicar algumas, para que o bom leitor as aprecie, guardando, só para mim, as suas assinaturas.
Não quero que me taxem de indiscreto”.

Vamos às cartas:

“Caro sr. Bento,
Tenho dezoito anos e diz o meu espelho que não sou feia.
Não sou de toda desajeitada, porque minhas amigas afirmam que caminho regularmente.
Nos bailes dizem os moços com quem danço que valso bem.
Sou católica.
Tenho ido regularmente às novenas, conduzindo, às vezes, uma tocha.
No entanto, sr. Bento, não me tem aparecido um noivo.
Penso ser isto devido a nunca parar em frente à minha casa o andor de Santo Antônio.

Pois bem, venho pedir-lhe o favor de obter esta graça. Se o conseguir, muito lhe agradecerá a (xxxxx)”.

**********

“Simpático sr. Bento,
Tenho vinte anos. Não sou magra nem gorda.
Olhos e cabelos pretos.
Nas faces claras, trago sempre a vegetar duas rosas.
Meus lábios são duas fitinhas rosadas.
Meus dentes, dentro de minha boca pequenina, são um colar de pérolas.
Minhas mãos calçam luvas letra A.
Meus pés acomodam-se bem, num sapatinho 32.
Para completar minha felicidade, preciso de um noivo que me compreenda.
Quero um moço que seja meigo como o Joca Moreira, alto como o Neneco, e gordo como o Dudú, que use pastinhas como o Manequinha, que seja elegante como o Joca Carvalho, que tenha uma capa como o Pereira, enfim, um moço que reúna todas as qualidades boas.
Alcançarei isto, se o sr. conseguir fazer parar em frente à minha casa, o andor do milagroso Santo Antônio.
Ah! Como lhe agradecerá a sua amiguinha (xxxxx)”.

**********

“Meu prezado sr. Bento Rosado,
Nesta nossa terra, quem mais faz, menos merece.
Meu pai, durante muitos anos, foi encarregado da Festividade do Espírito Santo.
Ajudou sempre o Fragoso a arrumar altares e enfeitar andores e, no entanto, nunca tive a dita de ver parado em frente à minha porta, o andor de Santo Antônio Grande.
É um desaforo! Isto não é privilégio de três ou quatro, é para todo filho de Deus!
Mas, vamos ao caso.
Estou com 50 anos.
Já tive sarampo, catapora e bexigas, deixando-me estas, na face, o sinal de sua passagem.
Dizia minha mãe que foram das tais de lixa. Estive envolvida em folhas de bananeiras e devo a minha salvação no miraculoso chá de Jasmim de cachorro, que tomei em quantidade.
Não sou velha, pois, não tenho cabelos brancos, nem pés de galinha.
Quero casar-me, seja com quem for, moço ou velho, torto ou aleijado.
Até o senhor me serve.
Faça parar o andor em frente ao meu ninho e venha falar comigo” (xxxxx).
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Cruz!
Olhe, minha senhora, eu agradeço, muito penhorado, o seu oferecimento.
Não estou resolvido a andar agarrado a um inverno chuvoso e frio.
Um conselho: vá criar pintos.
Assinado: Bento Rosado

4 comentários:

  1. Adorei. Não conhecia o toc toc na porta da igreja. Vou hoje.
    Rosangela Almeida

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  2. Quantas histórias sobre Santo Antônio. Dá um livro. Não sabia tanta coisa.
    Geraldo de Jesus

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  3. Valmir, que outro belo resgate de nossas história e tradições. Muito bem.
    Edison de Andrade Florianópolis

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  4. Realmente Valmir, 13 dias assistindo novenas com a mesma roupa íntima...
    Será que funcionava?
    Será que alguém conseguiu alguém usando a mesma calcinha? Cruzes!
    Márcia Gomes

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