Durante muitos
anos que atravessaram décadas, a professora Maria de Lourdes Barros representou
à comunidade cristã católica da Laguna a figura venerada de Verônica na
Procissão do Senhor Morto, na Semana Santa.
Com sua
belíssima voz de soprano, postada nos degraus de uma pequena escada defronte à
igreja Matriz, emocionava a todos que a ouviam.
Maria de Lourdes Barros no alto, como Verônica. À direita na foto, as jovens Sônia Brum, Maria de Lourdes Waterkemper e Marta Remor. Década de 1960. |
Entoando o
Responsório, o canto litúrgico com seus elementos harmônicos e polifônicos, ia
desenrolando o manto sagrado representando o Santo Sudário que enxugou o rosto ensanguentado
de Cristo na Via Crucis a caminho de seu calvário. Uma cena tradicional, melancólica e
memorável.
Breve histórico
Maria de Lourdes
Barros nasceu na Laguna em 24 de junho de 1929, filha de Manoel Américo de Barros e Lucinda Fortes
Barros. Irmã de Márcio, Marney, Manoel, Marcílio, Marilza e Marlene.
Seu pai era de São José (SC) e desde jovem veio para nossa cidade aqui militando como
Escrivão no Fórum de Justiça durante 36 anos.
No Colégio
Stella Maris onde fez seus primeiros cursos, Maria de Lourdes estudou canto
orfeônico com as Irmãs da Divina Providência. Depois, foi aluna do Ginásio
Lagunense.
Foi professora
de Catequese nas salas de aulas situadas no prédio dos Vicentinos. Normalista, exerceu
também o Magistério no Grupo Escolar Jerônimo Coelho, no Conjunto Educacional (hoje Escola de Ensino Médio)
Almirante Lamego (Ceal) e no Colégio Comercial Lagunense (CCL).
Foi uma das
componentes fundadoras do Coral Santo Antônio dos Anjos, onde colaborou como
diretora em várias gestões e atuou uma vida inteira com sua bela voz de
soprano.
Pertenceu ao
Conselho Municipal de Cultura na gestão do prefeito Mário José Remor/João
Gualberto Pereira (1977-1982).
Ainda na
década de 1980 foi responsável pela CRE (Coordenadoria Regional de Educação).
Cantas e me encantas
Numa crônica
publicada em dezembro de 1975 no jornal Semanário
de Notícias, dela falou o músico e maestro Agenor dos Santos Bessa:
“Você Maria de
Lourdes Barros cantando, encanta e empolga!
Por que você
cantando é subjugante. E como diria o poeta... quando cantas, me encantas!".
O
incentivo nos cursos
Foi minha professora no Científico do Ceal no período matutino,
como também do Técnico em Contabilidade do CCL, no período noturno.
No primeiro dia de aula, lá em 1975, Maria de Lourdes Barros se surpreendeu por eu
estudar dois cursos diariamente, porque realmente era muito puxado. Mas logo me incentivou
dizendo que, pelo pouco que me conhecia, tinha certeza que eu conseguiria
chegar lá.
Não estava sozinho na empreitada. Os até hoje meus amigos Pedro Rosa
Neto, Flávio Henrique Brandão Delgado e Zuleida Martins Rosa também enfrentaram
o desafio, em séries diferentes. E também obtiveram êxito.
Valmir Guedes Jr. recebendo diploma em dezembro de 1977 das mãos da professora Maria de Lourdes Barros, no palco do Cine Teatro Mussi |
Três anos depois quis o destino que fosse a professora Maria de Lourdes
a escolhida a me entregar os dois diplomas de conclusão em cerimônias distintas
realizadas no Cine Teatro Mussi.
No
programa Silvio Santos
Quando da participação de nossa cidade em 1978 no quadro Cidade X Cidade
do programa Silvio Santos, professora Maria de Lourdes explanou no palco com
sua inteligência e oratória sobre a nossa tricentenária Laguna.
Silvio, com sua “sensibilidade” peculiar disse que ela até parecia uma
professora de capital! Rapidamente Maria de Lourdes pegou a deixa e respondeu:
-Realmente, sou professora de uma capital!
-Que capital? Indagou o apresentador entre surpreso e curioso.
-Da capital da República Catarinense!
E Silvio Santos com seus trinta e dois dentes ficou no ar ao vivo para todo o Brasil, tomando uma aula de história sobre a cidade Juliana e Santa Catarina, pois ele desconhecia o nosso passado barriga-verde.
O desafio
ao governador
O saudoso Munir Soares em uma de suas crônicas conta que a professora “na
qualidade de cidadã lagunense soube reivindicar por sua terra”.
E contou Munir: “Um dia em plena Praça Vidal Ramos no Centro Histórico,
num ato político com centenas de correligionários e a presença do governador
Antônio Carlos Konder Reis, a professora Maria de Lourdes Barros pediu a
palavra e desafiou o primeiro mandatário catarinense:
-Governador, Laguna tem problemas e reivindicações de longa data. Um
desafio que os políticos teimam em ignorar. O senhor, governador, aceitaria o
desafio da Laguna?
Konder Reis aquiesceu e disse que aceitava”.
Bem. Laguna continua um desafio, mesmo depois de passados todos esses
anos.
Voz
inesquecível
Ainda hoje ao ouvir a canção “Creio em Ti” relembro sempre da voz
inesquecível de Maria de Lourdes Barros quando a interpretava em missas e nas
trezenas de Santo Antônio dos Anjos.
Minha esposa Julita que foi testemunha ocular e auditiva do fato que narro a seguir,
conta que Maria de Lourdes já enferma e bem debilitada cantou “Creio em Ti” em
público pela última vez numa novena. Seus já fracos pulmões e o fervor do
momento não a deixaram prosseguir e sua voz embargou. Foi quando a também
professora Maria José Maurício rapidamente intercedeu e finalizou o “Creio em
Ti”.
A emoção de quem presenciou a cena e/ou sabia o que estava ocorrendo nos
bastidores foi tamanha que levou muitos fiéis às lágrimas.
Maria de
Lourdes Barros faleceu aos 62 anos, em 9 de março de 1992, entristecendo a comunidade
lagunense que sentiu a perda de uma grande mulher que tanto fez pela educação e
cultura de nossa terra.
Quem
assumiu a figura e o papel de Verônica por muitos anos foi a professora Maria
José Maurício. Atualmente, quem exerce a função com sua linda voz é a também
professora Neusa Maria Preuss, integrante do Coral Santo Antônio dos Anjos.
Homenagem
Em 2011 a
sobrinha de Maria de Lourdes, a jornalista Lúcia Maria Barros da Silveira,
filha de sua irmã Marlene com Álvaro Silveira Júnior, escreveu belo e
emocionado texto sobre sua tia, contou a vivência ao seu lado e as lembranças
vívidas da representação da Semana Santa.
O texto
originalmente foi publicado naquele mesmo ano no Blog do professor Márcio José
Rodrigues estampando a imagem de Verônica de El Greco, de 1559.
Tomo a
liberdade de reproduzir o escrito aqui na minha página, mas usando lá em cima,
na abertura, uma rara foto há muito tempo procurada em meus arquivos e só agora
encontrada, que mostra a Verônica Maria de Lourdes Barros desempenhando sua
função, defronte à igreja Matriz.
Lúcia Maria um
ano e alguns meses depois da publicação de sua crônica, faleceu repentinamente
em 28 de setembro de 2012 em Florianópolis, vitimada por um infarto.
Ela intitulou
sua crônica:
Por Lúcia Maria Barros da Silveira
“Não adianta!
Por mais tempo
que passe, há lembranças das quais nunca nos desfazemos.
Na minha
Laguna querida na casa onde cresci morava a Verônica. Quanto encantamento era
isso. Minha tia Lourdes desde sempre em minha vida, durante essa época de
quaresma tomava a si esse personagem tão essencial para nós cristãos católicos.
Já sabíamos
que a procissão de Passos estava por chegar quando começávamos a ouvir, do
segundo andar de minha casa, os ensaios solitários de nossa amada Verônica.
Soprano exímia
e nata tinha em seu cantar o poder mágico de encantar.
Mas, como
Verônica seu canto se transformava no lamento tão conhecido por gerações de
lagunenses.
Desde pequena
tenho fascinação por essa época do ano.
Via a capa da
Verônica chegar em casa para ser limpa. Passava as mãos lentamente no veludo
azul escuro com aplicação em dourado nas bordas. Sentia uma emoção tão grande
de ter tão perto esse objeto que dava identidade à figura central do
grande teatro cristão realizado a céu aberto relembrando e reverenciando as
dores de nosso Senhor.
Ainda criança,
ia para a sala atrás da sacristia onde as figuras se vestiam. Vi muitas moças
se transformarem em Madalena e São João, outras em beús. O canto das beús até
hoje vem claro a minha mente.
Quem nunca se
arrepiou ao ouvir as batidas no chão das lanças dos centuriões?
Minha Verônica
começava sua preparação cedo. Ia ao salão, pois seu penteado era especial.
Colocava um pequeno aplique que guardava com muito cuidado.
Praticamente
sem maquiagem, no começo da noite ia para igreja.
Lá começava
sua transformação. O camisolão de branco impecável era vestido. Já com a linda
tiara de pedrarias na cabeça esperava a hora de começar.
Dado o sinal,
apanhava o mítico manto e o vestia.
Pronto!
Com o sudário
enrolado em suas mãos, já não era mais minha tia, era sim, a dolorosa figura
daquela que enxugou o santo Rosto em seu calvário.
Vivi os
bastidores dessa tradição centenária por mais de uma década. Mas o melhor ainda
viria.
No ano
de 1982, com 18 anos, recebi o honroso convite para ser Madalena. E vivi
momentos inesquecíveis. Com o vestido cuidadosamente elaborado por dona Natália,
costureira exímia, passei de observadora a protagonista da centenária tradição.
Ao lado de minha Verônica acompanhei as procissões de Passos e do Senhor Morto.
Posso afirmar
que é algo glorioso. Sou grata a Deus por ter me dado essa chance.
Ver minha
Verônica cantar ao meu lado aquele som sentido, aquela voz abençoada, aquela
cidade em suspense.
Memorável.
Vivi poucos
momentos que se comparem àqueles.
Foi o último
ano que minha tia cantou como Verônica.
Despidas de
nossas personagens naquela quaresma já tão distante voltamos solenes para casa.
A experiência
tinha me tocado profundamente.
Saímos pelas
ruas de nossa cidade, lado a lado, como Verônica e Madalena e sacramentadas,
voltamos para nossa casa como Maria de Lourdes e Lúcia.
Mas aquela
quaresma tem estado em mim em todas as quaresmas que se seguiram.
A Madalena que
fui, vivi aqui dentro e minha Verônica vive, em nós todos nós para sempre”.
Show! Quantas histórias Valmir. É a memória do nosso povo e cidade.
ResponderExcluirA nossa Laguna é mesmo muito rica. Haja tempo, memória e pesquisas pra gente contar. Agradeço a leitura e comentário.
ExcluirA conheci. Realmente tinha uma linda voz. Ótima professora.
ResponderExcluirRealmente. São personagens que passaram pelas nossas vidas e deixaram marcas. Agradeço a leitura e comentário.
ExcluirLinda história. Uma das inteligências da nossa terra. Ótima professora.
ResponderExcluirAgora Valmir, que cabelão hein? Que beca!
Agradeço a leitura e comentário. Pena a não identificação. Sim, sim, o cabelo era moda. E o terno era made in Romer do seu Caseca. E a foto não mostra mas o perfume era um banho de Lancaster.
ExcluirA par o mérito que se possa ter, tem que ser grande o coração de quem se lembra de homenagear.
ResponderExcluirTocado pela homenagem à minha irmã te abraço. Manoel, irmão e afilhado.
Ela merece por tudo que deixou gravado em nossas vidas e pelos serviços que prestou à comunidade lagunense nas áreas de educação e cultura. Fico feliz por ter sido seu aluno.
ExcluirAgradeço a leitura e comentário do irmão Manoel e que tão bem representou Laguna no estado em seu campo profissional. Aliás, a inteligência e educação são características natas da família.
Homenagem maravilhosa!
ResponderExcluirTerminei de ler , extremamente emocionada. Quantas lembranças! Apresentaram-se nítidas , aumentando a emoção. Obrigada, Valmir!
ResponderExcluirRealmente minha amiga Zuleida, texto da Lúcia Maria de emocionar. Quantas lembranças mesmo. Passa um filme na cabeça da gente. Agradeço a leitura e comentário.
ExcluirParabéns meu amigo Walmir, por tão bela e merecida homenagem
ResponderExcluirQue lindo. Adorei. Tive o prazer de cantar com dona Maria de Lourdes no coral Santo Antônio.
ResponderExcluirValmir, digno o registro e a homenagem a tão ilustre figura de cidadã, professora, religiosa, mulher culta, que tanto emocionou Laguna nas suas aguardadas interpretações. Abraço
ResponderExcluirRealmente meu caro Adolfo, merecidamente. Agradeço a leitura e comentário.
ExcluirEstou muito emocionada ao ler esta reportagem ,linda e maravilhosa ,destas pessoas que sempre relembro quando converso com minha irmã, quantos anos já se passaram...mas permanecem muito presentes em minha memória 🙏🏻😥😥😥
ResponderExcluirBoa tarde Valmir
ResponderExcluirObrigado por lembrar de mim; era dureza mesmo fazer os dois cursos com os professores excelentes que lecionavam: Elza, Sérgio Nacif, Jairo Baião, Toninho perna reta, Ivo Perin...
Mas a professora merece a homenagem pelo ser humano que era e pela habilidade de tudo fazer muito bem. Não conhecia o texto da sobrinha.
Grande abraço.
Que legal. Na época todos nós já éramos sedentos por conhecimento. E grandes mestres. Obrigado por tu não deixares a história da educação lagunense se perder. Abraços.
ResponderExcluirValmir, belo texto e fantástico depoimento de Lúcia. Lembro-me dela quando éramos jovens.
ResponderExcluirA D. Maria de Lourdes, realmente, tinha uma belíssima voz e tive o privilégio de, algumas vezes, ouvi-la cantar. A foto me emocionou, pois relembrei de minha tia Marta, minha primeira professora, Mais uma vez parabéns pelo Blog. Grande abraço.