sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

O naufrágio do Vapor Pernambucana na Laguna em 1853. Um marinheiro salva 13 vidas

Era para ser mais uma tranquila viagem mensal, partindo do Rio Grande do Sul ao Rio de Janeiro, em outubro de 1853.
Algumas horas depois do Vapor Pernambucana ter partido da Barra do Rio Grande, o tempo virou bruscamente. A nossa conhecida lestada atingiu a embarcação quase no meio da viagem, já no litoral catarinense. Durante três dias e noites a embarcação balançou ao sabor das ondas, totalmente fora de controle, sem qualquer visibilidade. Depois encalhou e naufragou ao sul do Cabo de Santa Marta, na Vila da Laguna. Dezenas de passageiros e tripulantes mortos. Entre os sobreviventes estava o marinheiro Simão que, exímio nadador, salvou várias pessoas, inclusive cinco crianças. Pelo ato de coragem e humanidade foi homenageado pelo Governo Imperial e Comércio do Rio de Janeiro.

Seis de outubro de 1853. O Vapor Pernambucana deixa a barra do Rio Grande com destino ao Rio de Janeiro. O navio traz, além da tripulação, muitos passageiros, num total de 124 pessoas.
Um navio a vapor em 1853.
O vapor Pernambucana já tinha história. Foi o segundo navio a ostentar esse nome na Marinha do Brasil. Nos anos de 1848-49 foi fretado à Cia. Brasileira de Paquetes a Vapor para transportar tropas da Bahia e do Rio de Janeiro para Pernambuco, Província convulsionada pela chamada “Revolta Praieira”.
Em 1853 retornava as suas viagens rotineiras e regulares no trajeto de cabotagem no trecho entre o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, com parada em Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis, para abastecimento.
A citada empresa promovia a ligação marítima entre a corte, capital do Império (Rio de Janeiro) e os portos do Norte e Sul do país. Era responsável também pela distribuição da correspondência postal, peça fundamental na implementação das decisões políticas da monarquia.
Havia interesse, além do aspecto comercial, de integrar politicamente e administrativamente as províncias do país.

Voltemos à viagem
O dia estava nublado e o mar calmo, nada demonstrando o que estava por vir.
Já fora da barra do porto de Rio Grande, alguns quilômetros ao norte, o tempo muda repentinamente. Um forte vento Leste (a famosa lestada) passa a soprar, com um forte temporal desabando em seguida.
O comandante da embarcação, 1º tenente João da Silva Branco, sem maiores opções, dá ordens de continuar a viagem.
Sem forças para vencer as ondas e o vento o navio fica totalmente perdido, vencido pelas forças da natureza.
Três dias e noites depois, em 9, o vapor com suas máquinas esgotadas e já fazendo água, vai dar à praia do Morro Grande ou Campo Bom, ao sul do Cabo de Santa Marta, na Laguna (hoje Jaguaruna) onde encalha por volta das 11 da manhã.

Desespero
Era de desesperar qualquer um. Três dias e noites ao mar, perdidos, sacolejados daqui pra lá, sem avistar terra, já quase sem esperança de sobreviver, com a ameaça de a qualquer momento a embarcação afundar.
 Manoel Joaquim de Almeida Coelho, em sua “Memória Histórica da Província de Santa Catarina”, editada e publicada em 1854, portanto no ano seguinte aos acontecimentos, e reimpressa em 1877, narra sobre o acontecimento:

“A confusão, sempre natural nestes conflitos, e o desejo da salvação da vida, animou quase toda a tripulação (com o respectivo prático José Maria Olival) e muitos passageiros a se arrojarem ao mar, em demanda da praia; mas ali, antes de chegarem, alguns foram vítimas desse arrojo”.
  
O jornal Correio Catharinense, de 30 de novembro de 1853, editado em Florianópolis, já que Laguna ainda não possuía imprensa à época, descreve o desastre, certamente baseado em testemunhos de alguns dos sobreviventes:

“No dia 8 pela tarde perorou o tempo e à noite o navio lutava com um dos mais fortes temporais, daqueles que costumam cair nas costas do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
O vento tinha a força de um tufão, o mar se tinha tornado em altas montanhas, que pareciam cobertas de areia, e o vapor lutava com a morte, levado pela caprichosa e terrível agitação das vagas.
Foi uma noite de cruéis angústias e ansiedades; muitas vezes esteve o navio quase submergido e os pobres passageiros outras tantas viram a morte. Tantas lutas tinham esgotado as forças do infeliz navio e os mares haviam arrebatado seus dois escalares”.

Simão, o marinheiro herói que salvou 13 vidas
Entre os marinheiros havia um de nome Simão, português, natural da cidade de Cabo Verde, na África.
Saul Ulysséa, numa crônica sobre naufrágios acontecidos na Laguna, publicada anos depois no jornal O Albor, escreve sobre esse personagem:

“Foi notável neste naufrágio, a coragem e destreza de um preto, português, natural de Cabo Verde. Era um homem forte e exímio nadador. Foi o primeiro a chegar a terra, onde descansou algum tempo, voltando para bordo, de onde conduziu um cabo para terra. Apesar de fortíssimas ondas, os passageiros e a tripulação admiravam a maneira como o nadador as vencia. Por meio do cabo foram salvas muitas vidas”.

Já no segundo dia, deram por falta de uma senhora com seus cinco filhos. Continuavam a bordo, pedindo socorro. O navio já começava a desmanchar-se. Nosso herói Damião, sem vacilar se atira ao mar e salva cada uma delas, trazendo-as a nado para terra. Treze vidas ele salvou.
Já o jornal Correio Catharinense, assim descreve o feito do marinheiro Simão:

“Treze vezes foi o marinheiro Simão de terra a bordo, nadando, guiado pelo cabo, e de cada vez salvava uma vida; quando depois de muitas viagens a força parecia abandoná-lo, parava um instante, deitava-se, revolvia o corpo na areia e partia de novo. É mister atribuir este grande esforço não só a coragem, como aos sentimentos de humanidade de que é dotado o marinheiro Simão, e ele merece o duplo galardão de corajoso e de sensível: estas duas qualidades reunidas em um só homem constituem um tipo raro e digno de maior admiração”.

O dia seguinte
Os sobreviventes foram abrigados provisoriamente na casa do inspetor de Campo Bom, Jesuíno de Souza Machado, situada a uma légua da praia, onde receberam comida e roupas e foram amparados pela esposa e duas filhas do inspetor.

“Na manhã seguinte (10), relata ainda o Correio Catharinense, via-se pela praia restos do navio, o mastro já tinha caído e o meio do navio mergulhado até a proa. Os naufragados estavam na casa do inspetor aguardando transporte para o centro da Laguna. Para trás deixavam sepultados os cadáveres de seus infelizes companheiros. Na Vila da Laguna foram recebidos como bons irmãos e carinho possível.

A notícia do naufrágio chega às autoridades da Laguna
A notícia do naufrágio chegou às autoridades e à população da Laguna. Logo o subdelegado de polícia José Antônio Fernandes Vianna, acompanhado dos cidadãos tenente-coronel Jerônimo Coelho Netto, major Francisco de Souza Machado, capitão Custódio José de Bessa, Domingos Custódio de Souza e o vigário da paróquia da Laguna Francisco de Santa Isabel, mais uma força da Guarda Nacional, se apresentou no local da tragédia, oferecendo ajuda.
Oitenta e duas pessoas foram salvas e quarenta e duas morreram afogadas, rolando pelas areias da praia.
Dos sobreviventes, “menos de dez preferiram voltar por terra para o Sul”.
Setenta e dois chegaram ao centro da Laguna no dia seguinte e foram abrigados em várias casas. Logo foi feita uma subscrição entre os mais abastados da cidade.
Diz Coelho em seus escritos:

“O importe da subscrição foi oferecido ao comandante do navio e passageiros do vapor para o empregarem no que fosse mister, porém eles recusaram aceitar quantia alguma, e somente aceitaram alguma roupa e fazendas que com o mesmo importe se compraram e se lhes ofereceu”.

Os anfitriões lagunenses
“Receberam os tripulantes, famílias e passageiros em suas casas o major Francisco de Souza Machado Cravo, capitão Custódio José de Bessa, José Pacheco dos Reis, coronel Jerônimo Coelho neto, tenente-coronel José Antônio Cabral e Mello, vigário Francisco de Santa Isabel, cirurgião Moraes e delegado de polícia José Antônio Fernandes Vianna”.

O adeus e a carta de agradecimento pela hospitalidade
Os naufragados sobreviventes ficaram na Laguna até o dia 16 seguinte, quando, por problema de calado em nossa barra, despediram-se e foram até Imbituba onde através de transbordo em botes, tomaram o vapor Guapiaçu, comandado pelo 1º tenente Theotônio Raymundo de Brito, em direção ao Rio de Janeiro, com breve parada na Ilha de Santa Catarina (Nossa Senhora do Desterro).
Antes, deixaram uma carta de agradecimento à hospitalidade dos lagunenses, que tão bem o receberam num momento de grande infortúnio.
Eis o teor da carta:

Agradecimento dos naufragados:
“Ilmos. Srs. João Pacheco dos Reis, dr. Moraes, coronel Jerônimo Coelho Netto, tenentes-coronéis José Antônio Cabral e Mello, Antônio José da Silva, comandante superior Domingos José da Silva, major Francisco de Souza Machado Cravo, Antônio Joaquim Teixeira, capitães Custódio José de Bessa, Luciano José da Silva, delegado José Antônio Fernandes Vianna, vigário Francisco de Santa Isabel, José Dias Soares, Domingos Custódio de Souza, João José de Souza, inspetor de Campo Bom Jesuíno de Souza Machado, e mais senhores que involuntariamente deixamos de mencionar.
Os abaixo-assinados faltarão ao mais sagrado dos seus deveres se ao deixarem a cidade da Laguna para continuarem a sua viagem para o Rio de Janeiro, não manifestassem seu reconhecimento, e de todos os mais seus companheiros d’infortúnio, pela proteção que, após do seu naufrágio, de vós receberam: os cuidados e desvelos com que depois, como pais, lhes tendes prodigalizado, suprindo-lhes tudo o que preciso lhes tem sido para suavizar sua desgraçada sorte.
Aos abaixo assinados presentemente não lhes resta outro meio senão este, de vos patentear sua eterna gratidão, reservando-se para, em ocasião mais oportuna, fazer público vossas sublimes qualidades, generosidade e filantropia com que a todos tratastes, e os inúmeros recursos que lhes proporcionastes, a fim de nada lhes faltar e poderem esquecer sua desgraça.
Agradecei, pois, senhores, em nome de todos os naufragados do vapor Pernambucana, ao bom, generoso e hospitaleiro povo de vossa Cidade a avidez com que à porfia nos encheram de obséquios; pedindo-vos mui respeitosamente que aceiteis este nosso agradecimento que nada mais tem de valor do que a expressão dos corações daqueles que tanto vos devem.
Para onde a sorte nos for favorável, levaremos imortal lembrança de vós, e contas sempre com o nosso débil préstimo; por toda a parte bendiremos e com saudades nos lembrarão vossos nomes, restando-nos pedir ao Altíssimo pela vossa prosperidade, e que a vós e a vossas famílias dilate a vida por muitos anos. Laguna, 16 de outubro de 1853”.

Nomes dos sobreviventes
Coelho não traz os nomes de alguns dos sobreviventes que subscreveram a Carta. Mas pesquisando novamente no jornal Correio Catharinense, editado em Desterro (atual Florianópolis), edições de novembro daquele ano, que trouxe reportagens sobre o fato, pude anotar alguns deles:
·     Tenente-coronel Carlos Resin e sua filha; um soldado e um criado;
·        1º tenente da Armada, A.J. Crivello d’Ávilla;
·        Capitão M.G.C. Barros, sua mulher e uma cunhada;
·     José Antônio de Calasam Rodrigues, sua mulher, 3 filhos, 2 escravos e 1 criado;
·        Dr. Augusto Victorino Alves Sacramento;
·        Alferes Arsênio J. de Souza;
·        Tenente José Betbesé de Oliveira Neri;
·        Antônio José de Freitas;
·        Damião Francisco Martins de Moura, e um escravo;
·        Benjamin Aveline, 1 filha e 1 escravo;
·        Capitão José da Silva Pinheiro;
·        Felisardo José Rodrigues;
·        Joaquim José Mendes Pintado e 1 escravo;
·        Luiz Vieira da Cunha e sra., com cinco filhos;
·   Luiz Correia de Mello, comandante do vapor; o mestre e o despenseiro;
· Criados da câmara, Camilo e Francisco; e o 1º e 2º maquinistas (nomes não citados). Total: 42 pessoas, das 72 que chegaram a Laguna.

Como se pode constatar, na lista publicada no jornal com os nomes de alguns dos que se salvaram, além de não constar vários nomes (fica-se nos genéricos: filhos, filhas, criados, escravos, maquinistas...), não consta o nome de Simão, o herói que salvou 13 vidas. Pode estar incluído como um dos tripulantes (mestre, despenseiro, foguista ou maquinista).
Quanto à senhora e seus cinco filhos salvos pelo marinheiro Simão, obviamente é a esposa de Luiz Vieira da Cunha (assinalado em negrito), como consta na relação, afinal é a única com essa prole.

D. Pedro II (Brasil) e D. Pedro V (Portugal) homenageiam o marinheiro Simão
Chegando ao Rio de Janeiro, o marinheiro Simão recebeu das mãos do imperador D. Pedro II, medalha de ouro de distinção pelo feito do salvamento de vidas. No anverso da medalha a efígie do imperador e seu brasão, e no reverso o dístico: "Ama o próximo como a ti mesmo". Na Praça do Comércio da então capital do Brasil, um busto do marinheiro Simão foi erigido.
O comércio do Rio de Janeiro lhe fez uma dotação de dez contos de réis, uma excelente soma à época e muitos daqueles que ele salvara lhe proporcionaram de presente outras quantias.
 
No Arquivo Nacional de Portugal, graças à internet e edições fac-símiles, encontrei dois documentos onde Rodrigo da Fonseca Magalhães, ministro do Reino, em 14 de dezembro de 1853, em nome de El Rei (D. Pedro V), concedeu medalha de ouro ao marinheiro e conterrâneo Simão, “Dando assim um testemunho público de grande apreço em que tenho tão relevante serviço prestado à humanidade”.
Na medalha a efígie da rainha Dona Maria II e no reverso, entre duas palmas a frase: "Ao mérito, filantropia, generosidade - Ao súdito português Simão - 7 de outubro de 1853.

Infelizmente, mais dois documentos - e estes oficiais- que não citam o sobrenome do marinheiro Simão e maiores pormenores de sua vida. Um personagem que parecia ter sumido das páginas da história durante muitos anos, mas graças a pesquisadores e historiadores podemos saber mais um pouco sobre ele, hoje em dia.

Quem era o marinheiro Simão
Simão Manuel Alves Juliano, ou, como passou a ser conhecido após o incidente: Simão Salvador.
Retrato do marinheiro Simão do Vapor Pernambucana. Óleo sobre tela, 93cm x 72,6cm, de autoria de José Correia de Lima. Museu Imperial de Belas Artes, Rio de Janeiro.
Era natural de Penha da França, da Ilha de Santo Antão, Arquipélago de Cabo Verde. Filho de Ana dos Santos Pedrinho e Manuel Alves Juliano.
Bem cedo deixou sua terra natal em busca do pão de cada dia. Em 1853, como já vimos, era marinheiro do navio a vapor Pernambucana, quando se deu os acontecimentos narrados acima.
Em 15 de abril de 1854, a Real Sociedade Humanitária do Porto concedeu-lhe medalha de ouro de 1ª classe, entregue em sessão solene pública realizada naquela data.
Em uma das paredes do salão nobre dos Paços do Concelho da Ribeira Grande, Simão também foi homenageado com sua óleo gravura.

Ao falecer, suas medalhas foram adquiridas pela Câmara Municipal do Concelho da Ribeira Grande e estão expostas no Salão Nobre daquela Casa.

Quando os sobreviventes do vapor Pernambucana se despediram da Laguna e de quem tão bem os acolheu naquele momento de infortúnio, o Correio Catharinense registrou o adeus, e caprichou nas tintas poéticas. Aproveito para terminar este texto que já se estendeu em demasia. Mas ainda bem que há quem goste dessas histórias:

“Na despedida da Laguna, bastantes lágrimas se derramaram. Não eram estranhos que se despediam, eram pessoas a quem a humanidade e a desgraça tinham nascido com os laços da gratidão e da piedade”.

4 comentários:

  1. Que ótimo resgate de nossa história, Valmir. Imagino o trabalhão que deu. Mais um capítulo bem escrito e pesquisado. Wilmar Coelho

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  2. Passou em documentário na TV (sobre museus) que uma gravura com a imagem de Simão está exposta em um Museu ao lado de grandes personagens brasileiras.
    Fato muito relevante, pois não se trata da imagem de um negro, mas de um pessoa negra e identificada.
    Parabéns Valmir. Luiz Fernando

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  3. Descobri que uma antepassada minha parente faleceu neste naufrágio. A esposa do Ten. Coronel Carlos Resin (chegou a brigadeiro), chamada Claudina de Campos Resin. Ele se salvou com a filha.

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  4. a onhb faz a gente andar por lugares que eu nunca imaginei

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