Quando a história a seguir aconteceu, a Praia do Mar Grosso na Laguna não era, evidentemente, o que é hoje. Era ainda chamada de Arrabalde do Mar Grosso.
Enormes dunas
de areia compunham o cenário e se espalhavam com sua vegetação rasteira
por toda aquela extensão.
Casas somente algumas situadas nas encostas do morro perto das pedras do Iró. E era
só.
O Mar Grosso na década de 1920. No canto do morro, nas proximidades das pedras do Iró, as poucas casas de veraneio das famílias abastadas da Laguna. |
Além disso,
existiam pequenas lagoas, principalmente nas proximidades das encostas do morro pelo
lado sul, já quase no Magalhães.
Numa delas, de
maior porte, em suas águas escuras e
profundas habitavam jacarés de papo amarelo, de vários tamanhos. Bem por isso o
local foi conhecido popularmente como Lagoa Preta. Hoje a região é denominada
Bairro Navegantes.
Era usual
naquela época o fogão a lenha com o combustível sendo adquirido em feixes nas
canoas que aportavam nas Docas ao lado do Mercado Público, no centro da cidade.
Os menos
afortunados retiravam dos morros que circundam a cidade a sua lenha, através do
recolhimento de galhos secos caídos e do corte proibitivo de árvores, sem nenhuma
preocupação com preservação ambiental.
A esperança nas cinzas das horas
Dona Maria Mercedes
era mulher humilde, trabalhadora. Lavava roupas para fora nas águas da fonte da
Toca da Camila, no Magalhães, arrabalde onde morava.
Em algumas tardes
percorria as trilhas das matas em busca do combustível oriundo da natureza
para fazer o fogo e preparar a comida para sua família.
O marido Antônio
era pescador, sempre envolto com redes, barcos, viagens e histórias do mar.
Neste dia, por exemplo, estava pescando, embarcado lá pras bandas do Farol de Santa Marta.
Retornaria no dia seguinte.
Dª Maria
Mercedes tinha como único filho o José, menino de seis anos, seu maior tesouro. Complicações no parto a impediram de novos rebentos.
Mas Maria
precisava trabalhar para completar a renda da família. A pescaria do Antônio era incerta. Às vezes rendia e em outras ocasiões não dava nem pra comida do dia-a-dia.
Certa tarde, como vez ou outra fazia, deixou seu filho aos cuidados de uma vizinha e subiu o morro em busca de lenha.
Ia cantando velhas canções, sem reclamar da vida e pensando: Fazer o quê? Importante é ter saúde para trabalhar e seguir em frente. Se Deus Nosso Senhor Jesus Cristo quiser um dia tudo isso melhora.
- E ele há de querer! Exclamava.
As horas passaram
rápido, nem se apercebeu. Concentrada no afazer, demorava-se.
O desaparecimento
Fugindo aos
olhos não tão atentos da vizinha, envolvida nos trabalhos da casa, o franzino Zezinho,
como era chamado, decidiu ir ao encontro da mãe. Devia estar por perto, pensou.
Pensou coisas de criança. Foi.
Saiu
caminhando por uma trilha rente ao morro. Sempre chamando pela mãe, entrou numa
vereda, outra vereda, mas eram tantos os caminhos... Confundiu-se. Subiu e
desceu cômoros. Já ia longe do ponto de partida a criança.
O sol já se
punha no fim de tarde quando Maria Mercedes retornou. Trazia às costas, nos ombros, um grande
feixe com o produto recolhido.
Na cerca da
vizinha chamou:
Zezinho? Onde tu
estás Zezinho? Vem... Joséé...
Não obteve resposta. A vizinha cuidadora não sabia explicar. Ele estava ali, no quintal
agora há pouco, brincando com umas pedrinhas, imitando bichos.
A mãe se desespera. Sai pela
vizinhança perguntando:
- Viram o meu
filho Zezinho por aí? O Zezinho está aí? Cadê o Zezinho, meu Deus?
Ninguém tinha
visto. Anoitece. Os homens ficam condoídos da situação da pobre mãe angustiada que
chorava sem parar. Montam turmas e com lampiões nas mãos saem a procurar.
Dividem-se. Um
grupo vai em direção ao Molhe Norte que está sendo construído com pedras
retiradas à Pedreira da Lagoa Preta. Este pessoal vai seguir depois pela praia;
outra turma margeia a encosta do morro; e um terceiro grupo segue pelas
trilhas, circundando a grande e profunda Lagoa com seus animais de olhares
noturnos, jacarés de bocas grandes, famintos. Deus-me-livre!
Ficam de se
encontrar no caminho que vai pelo morro. Uma turma ao chegar espera a outra.
Dali em diante é a pequena Praia do Iró e em sua continuação a extensa e
solitária Praia do Gi, o menino não poderia ter ido tão longe, todos concordam.
Passam distantes
de uma conhecida pedra na encosta do morro da Lagoa Preta, onde o povo contava, diz o historiador Saul Ulysséa em seu livro "Laguna de 1880", que
existia um defunto seco que aparecia à noite. Caminham murmurando:
Por Laguna!
Por São Jesus!
Passo aqui
Sem levar cruz!
Lendas e mistérios de uma cidade.
Verdade? Mentira? Pelo sim, pelo não, muitas pessoas evitavam caminhar por
ali no período noturno.
Apressaram os passos.
- Zezinho? Zééééée???
O estranho hóspede
João Guimarães
Cabral era um homem abastado. Rico comerciante em nossa cidade,
sócio-proprietário da firma Cabral & Irmão. Mais tarde será prefeito da
Laguna, no final da década de 1920.
Mas ainda
estamos em 20 de novembro de 1913, quando se passa a nossa história.
Com os
primeiros calores do verão era usual que algumas famílias que possuíam casas na
– então chamada - praia de banhos do Mar Grosso, para lá se dirigissem.
Passavam dias,
às vezes uma temporada toda. Era uma viagem em carroças levando toda a família,
empregados e mantimentos, atravessando o morro pela rua Voluntário Benevides, a
antiga rua dos Andradas, como algumas pessoas ainda a denominavam, certamente
saudosas da Monarquia.
Para passar a
temporada do lado de lá se despediam de vizinhos aqui no centro. Era como se
fossem para outra cidade.
Eram poucas
casas no Mar Grosso, maioria situada na encosta do Morro em direção à Praia do
Iró.
Ali o juiz de
Direito da Comarca Manoel Fonseca Galvão tinha casa, assim como o administrador
da Mesa de Rendas Francisco Maria da Silva, o comendador João de Sousa
Guimarães, entre outros poucos.
Mais para
perto do caminho do morro possuía também sua casa, João Guimarães Cabral.
Era por volta
das 8 da noite e o casal Cabral tinha ido ao entardecer visitar nas imediações outro
morador, o sr. Júlio Régis. Visita rápida. Uma criada de confiança ficou tomando conta de suas filhinhas.
No período da curta
ausência do casal apareceu uma criança, um menino pedindo para passar a
noite.
A criada com
as crianças a recebeu. Ela disse chamar-se José, Zezinho, como sua mãe a chamava.
Entrou e ficou encolhido, acocorado num canto da sala.
Quando o casal
Cabral chegou soube do ocorrido e do hóspede. Indagaram pelos fatos. O menino narrou
que saiu em busca de sua mãe que se chamava Maria e que tinha se perdido no
caminho. Morava no Magalhães. Pensou em pedir ajuda na primeira casa que
encontrou, já era noite.
Narrava calmo
o acontecido.
Deram-lhe
comida, prepararam uma cama e minutos depois José dormia sossegadamente.
Já o casal
estava preocupado e se indagava como uma criança se perdeu àquela hora da
noite, estava tão calma, não chorava ou chamava por sua mãe e ninguém a tinha procurado.
Dormiram
tarde, já pensando nas providências a tomar no dia seguinte.
Já passava da
meia-noite quando ouviram vozes e alguém chamando ao longe:
- José? José?
Zezinho?
Abriram a
porta e deram com um grupo de uns vinte homens, tendo à frente Luiz Costa,
morador do Magalhães, conhecido de vista de Guimarães Cabral.
Este que
parecia ser o líder deles explicou que estavam procurando uma criança que havia
se perdido de sua mãe que estava desesperada, chorando muito.
- Sim, sim o
menino está aqui, são e salvo, respondeu o dono da casa.
Foi um alívio.
- Graças a
Deus! exclamaram todos ao mesmo tempo.
Acordaram o
menino que foi levado no colo, numa viagem de volta até onde morava.
Imaginem a
felicidade da mãe, ao recebê-lo são e salvo, em sua humilde casa no Magalhães.
No dia
seguinte a história foi contada em detalhes nos estabelecimentos comerciais, nos
armazéns, barbearias, boticas e casas de moradia de nossa cidade.
O sucedido
mereceu até registro no jornal O
Albor de 23 de novembro de 1913.
Na primeira missa dali a alguns dias realizada com a inauguração da pequena Capela de Nª Sª dos Navegantes, no Magalhães, em 25 de dezembro de 1913, a história do menino perdido e encontrado foi citado pelo padre que pediu orações e agradeceu a Deus.
Dona Mercedes com o marido Antônio e o filho Zezinho estavam presentes para agradecer, com muita fé.
Muitos demonstraram
admiração pelo modo de agir da criança, sempre calma, completamente sozinha
pela praia, à noite, mas tendo o discernimento de pedir ajuda. E como pode ter caminhado tanto!
Um anjo da
guarda com certeza a protegeu e a guiou, diziam os mais fervorosos.
E durante
muitos anos na Laguna se contou às crianças antes de fazê-las dormir, a
história do menino perdido do Mar Grosso. Até que gerações se sucederam e
desapareceram todos os personagens desse acontecimento, transformando-se em poeira
dos tempos.
Mas ficou o
registro numa pequena nota perdida no rodapé de um velho jornal empoeirado e do
qual resgatamos a história para os nossos leitores, com os nomes reais dos personagens, acrescida por algumas licenças poéticas
deste autor.
Legal essa história, mesclando o fato com dados históricos.
ResponderExcluirGrato pela leitura e comentário.
ExcluirParece um filme, vi as cenas uma a uma. Dá um roteiro. Abraço
ResponderExcluirQue dá um roteiro dá. Acrescente-se mais alguns detalhes, umas emoções, umas cenas de suspense, uma boa trilha musical...
ExcluirGrato pela leitura e comentário.
Adorei a história tão detalhadamente contada. Obrigada por nos proporcionar tanta curiosidade a cada palavra, cada situação, cada parágrafo. Gosto muito dessas histórias de nossa terrinha. Fatinha do Magalhães.
ResponderExcluirE como a nossa terra tem histórias hein Fátima?
ExcluirAgradeço a leitura é comentário.
Parabéns Valmir!
ResponderExcluirHistórias muito bonitas que envolvem o leitor. Seus textos nos enriquecem em conhecimento de fatos acontecidos em terras Lagunenses.
Agradeço a leitura. Abraço.
ExcluirBoa tarde Valmir. Ótima história, muito bem escrita e repleta de nuances e pontos de referências, que também serve de alerta para muitos pais que porventura possam se descuidar dos filhos em algum momento, porque criança é bicho danado, deu uma bobeira, já viu né, ou melhor sumiu... Obrigado mais uma vez. Abraço.
ResponderExcluirAgradeço a leitura e comentário. Abraço.
ExcluirValmir sempre recuperando essas histórias da nossa terra e dando um toque com seu escrever. Ficou show. Abraços
ResponderExcluirAgradeço a leitura e comentário. Abraço.
ExcluirMuito bom, como sempre Valmir.
ResponderExcluirValeu Renato. Abraço.
ExcluirA história passou linda e colorida na minha cabeça. Meu filho Maurício também desapareceu, certo dia primeiro do ano(1988),na praia do Mar Grosso, numa época em que a boataria corria solta, que os argentinos vinham para o Brasil roubar crianças. Sei perfeitamente o desespero da mamãe do Zezinho. Valeu!
ResponderExcluirAgradeço a leitura e comentário, Zuleida.
ExcluirValmir, como sempre, um belo resgate de mais uma história de nossa velha Laguna. Belo texto. Abraço.
ResponderExcluirValmir... os comentários que precederam ao meu já disseram tudo, assim, só me resta tambpem parabenizá-lo por nos proporcionar mais uma das "histórias" contadas e recontadas que ocorreram na nossa Laguna. Mesmo tendo lido muito sobre os fatos pitorescos da nossa terra, não tive conhecimento deste fato... sim, porque independente do seu "verniz poético" para romancear, o fato efetivamente existiu há mais de um século. Com relação a Lagoa Preta... sim, meu sogro Luiz Nicolazzi Junior (o Seo Lulu) lagunense que viveu quase 103 anos e com perfeita coordenação mental, comentou comigo diversas vezes que ele não viveu esta época, mas, conversando quando era jovem... com pessoas mais velhas, estas comentaram sobre a Lagoa... os Jacarés e sobre o "difunto seco", que flutuava nas águas e de vez em quando assustava as mulheres que como lavadeiras ustilizavam a Lagoa. Enfim, coisas e histórias da nossa velha Laguna que nos remete a um passado romantico, nostálgico e muito verdadeiro.
ResponderExcluirAbraço do Adolfo Bez Filho - Joinville / SC.