“Fazer
jornalismo é produzir memórias”
(Geneton Moraes Neto)
Amanhecia naquela segunda-feira, 13 de março de
1911. Logo uma notícia correu como um rastilho de pólvora pela Laguna que acordava
sonolenta para mais uma semana. Um navio havia naufragado na localidade do
Farol de Santa Marta.
A embarcação se acidentou por volta das duas horas da madrugada, encalhando ao sul do Farol de
Santa Marta, entre as Praias da Cigana e Cardoso, defronte ao Ilhote (que na verdade não é ilha) do Cardoso.
Imediatamente
seguiram para o local o delegado de polícia da Laguna, Antônio Soares da Silva,
dois guardas da Mesa de Rendas Federais e várias outras pessoas, curiosos em
sua maioria, como sempre acontece quando se trata de acidentes.
Desenho ilustrativo de um paquete a vapor do século XIX. |
O navio Catalão
Nas primeiras
informações colhidas no local, soube-se que se tratava do Vapor Catalão, de 4
mil toneladas, que havia pertencido à Companhia Transatlântica Argentina, mas
agora de propriedade da firma Darisch & Cia., do Rio de Janeiro. Era sua
primeira viagem com bandeira brasileira. Vinha de Buenos Aires com destino ao Rio de Janeiro, Bahia e Pará.
O navio era um
paquete, media 100m6cm de comprimento com 12m6cm de largura, construído pelo Estaleiro inglês Stephenson Robert & Co. Hebbun-On-Tyne, em
1889.
A tripulação,
incluindo-se sua oficialidade, compunha-se de cinquenta pessoas.
Era comandante
do navio, Lúcio Duarte Valente. Em protesto lavrado, informou que o acidente
foi provocado “pela correnteza oceânica e a cerração que havia naquela fatídica
noite”.
Carneiros, bois e vacas no porão
O carregamento
constava de alfafa, charque, molhados e perfumaria. Não se achavam no seguro
nem o casco do vapor nem sua carga.
Trazia também
a bordo, em seus porões, cerca de 800 carneiros, além de 190 bois e vacas.
Alguns desses animais de pura raça, como uma vaca holandesa e uma égua de puro sangue.
Muitos desses
animais morreram na tentativa de salvamento, mas a maioria foi desembarcada ali
mesmo, na praia, ficando solta nos campos vizinhos.
Um corpo embalsamado
Um fato
curioso e deveras triste. A bordo vinha o corpo embalsamado da filha de um
coronel de sobrenome Fragoso, que havia integrado a Casa Militar do
ex-presidente do Brasil, Afonso Penna. “Falecendo em terra estrangeira quis ser
sepultada em terra de sua pátria”. Certamente seu último desejo em vida. O
jornal O Albor, de onde retirei a informação, não informa seu nome nem a causa mortis.
Já o jornal O Dia, de Florianópolis, edição do dia 18, informa que "O caixãozinho deu à praia no lugar do sinistro. Sabendo da ocorrência o governador do estado telegrafou ao superintendente Municipal da Laguna, Oscar Pinho, solicitando que o caixão fosse recolhido e posto à disposição dos parentes da criancinha".
Já o jornal O Dia, de Florianópolis, edição do dia 18, informa que "O caixãozinho deu à praia no lugar do sinistro. Sabendo da ocorrência o governador do estado telegrafou ao superintendente Municipal da Laguna, Oscar Pinho, solicitando que o caixão fosse recolhido e posto à disposição dos parentes da criancinha".
Fiscalização
Em 16, chegava ao nosso porto o rebocador "Florianópolis", da Alfândega
da capital do estado. Trazia o guarda-mor major Raul Tolentino, o escriturário
Demóstenes Veiga, guardas e uma força de 20 praças do 54º Batalhão de
Caçadores, de Florianópolis. O aparato era para fiscalizar, controlar saques e checar os muitos boatos que
circulavam pela cidade, principalmente o de que a bordo do navio naufragado
teria vindo grande quantidade de contrabando, principalmente o charque oriundo
da Argentina.
Bem por isso a chegada de autoridades fiscalizadoras. O jornal O Albor também noticia que no dia 22
veio pelo navio “Meta”, proveniente de Florianópolis, o conferente da
Alfândega Ignácio Mascaranhas. Dois dias antes já haviam chegado o inspetor da
Alfândega, Vossio Brígido e o escriturário Sabino Espíndola Colombo.
O proprietário
do Catalão, o armador Pedro Santerre Guimarães se queixava às autoridades do tratamento
recebido. Numa carta enviada ao jornal O País, do Rio de Janeiro e publicada em
22, denunciava que muitos animais seus haviam sido abatidos ou se perderam; que
seu vapor havia sido invadido, saqueado, com consumo de conservas/suprimentos
que restavam.
Reclamava que
a fiscalização da Alfândega queria enviar a carga para Florianópolis “com
grandes dispêndios e prejuízos, quando tenho neste porto um vapor especialmente
fretado para esse fim. O dono das cargas, que se acha presente, deseja
reembarcar para o Rio, tomando o fisco as providências no lugar conveniente
para acautelar seus interesses”.
E finalizava: “Vou
lavrar um termo de abandono do vapor, protestando por perdas e danos causados”.
De fato, desde
o dia 20 daquele mesmo mês, portanto sete dias após o incidente, estava atracado em nosso cais do porto do centro da cidade, o vapor "Nacional Oceano", também de propriedade de Santerre Guimarães. Era comandado
por Estevão Lopes Maurício e aguardava o desenrolar dos acontecimentos com intuito
de levar os salvados, tripulantes e oficiais do Catalão para o Rio de Janeiro,
destino final e interrompido.
Divergências
Em sua edição de 19 de março o jornal O Dia noticia que de acordo com o guarda-mor da Alfândega, Raul Tolentino, os salvados até aquele dia foram: 140 vacas, 2 cavalos, 180 ovelhas e 65 volumes com mercadorias diversas. "Sabemos que 50 marinheiros vagueiam pela praia sem recursos".
Na edição do dia seguinte, o mesmo jornal informa que "mais 600 carneiros foram salvos (arrecadados), assim como mobílias, espelhos e alguns caixotes com seda".
Há uma informação importante também. A de que o Catalão (casco e equipamentos) teria sido vendido a negociantes da Laguna (sem citar seus nomes). O jornal O Albor, em 19, havia dito tratar-se de João Guimarães Pinho e Francisco Martins Cabral. O valor? 5:000$000 (cinco contos de réis). Numa conversão aproximada hoje com o nosso real, cada conto de réis equivaleria a cerca de R$ 120.000,00.
Divergências
Divergências
Em sua edição de 19 de março o jornal O Dia noticia que de acordo com o guarda-mor da Alfândega, Raul Tolentino, os salvados até aquele dia foram: 140 vacas, 2 cavalos, 180 ovelhas e 65 volumes com mercadorias diversas. "Sabemos que 50 marinheiros vagueiam pela praia sem recursos".
Na edição do dia seguinte, o mesmo jornal informa que "mais 600 carneiros foram salvos (arrecadados), assim como mobílias, espelhos e alguns caixotes com seda".
Há uma informação importante também. A de que o Catalão (casco e equipamentos) teria sido vendido a negociantes da Laguna (sem citar seus nomes). O jornal O Albor, em 19, havia dito tratar-se de João Guimarães Pinho e Francisco Martins Cabral. O valor? 5:000$000 (cinco contos de réis). Numa conversão aproximada hoje com o nosso real, cada conto de réis equivaleria a cerca de R$ 120.000,00.
Divergências
O Albor
comenta que havia divergências entre o proprietário do navio naufragado,
Santerre Guimarães, e os representantes do fisco.
Mas até o fim daquele mês, ao que se deduz tudo foi legalizado, ânimos acalmados, multas pagas, impostos e taxas recolhidos pelo transporte da carga, principalmente o charque. Os proprietários, do navio e da carga, devem ter entrado num acordo com os fiscais da Alfândega e regularizado todas as pendências. Não haveria outra saída, devem ter chegado à conclusão. Era isso ou o prejuízo total.
Em sua edição de 29 de março, O Dia informa que "o comandante do Catalão foi autorizado a reembarcar no "Oceano" a carga que vinha naquele vapor".
Mas até o fim daquele mês, ao que se deduz tudo foi legalizado, ânimos acalmados, multas pagas, impostos e taxas recolhidos pelo transporte da carga, principalmente o charque. Os proprietários, do navio e da carga, devem ter entrado num acordo com os fiscais da Alfândega e regularizado todas as pendências. Não haveria outra saída, devem ter chegado à conclusão. Era isso ou o prejuízo total.
Em sua edição de 29 de março, O Dia informa que "o comandante do Catalão foi autorizado a reembarcar no "Oceano" a carga que vinha naquele vapor".
No dia 31, os salvados partem
No dia 31 de
março, O Albor noticiava que do cais do velho porto, zarpava o vapor "Nacional
Oceano", “conduzindo os salvados do paquete Catalão!”.
Lá se ia o que
pode ser recuperado, além dos tripulantes e a oficialidade que por aqui ficaram
hospedados 17 dias. O jornal não informa se todos os animais que foram salvos também
seguiram nos porões ou se alguns deles ficaram para trás, negociados na praça.
E o corpo
embalsamado da filha do coronel Fragoso? Nem uma linha do semanário.
Imaginemos que também seguiu viagem em busca da paz do seu campo final de
repouso, em sua terra natal.
“Acompanhando
os salvados seguiu a bordo o sr. Colombo Espíndola Sabino, escriturário da Alfândega
e um guarda”. Trata-se de Manoel Luiz Barbosa, de acordo com o jornal O Dia, de Florianópolis.
Com tudo o que
aconteceu, a presença das duas autoridades certamente era uma garantia que a viagem seguiria até o Rio de
Janeiro sem maiores paradas ou contratempos.
Um cartão, a guisa de despedida
No mesmo dia 31, a
bordo do navio Oceano, o comandante do Catalão se despedia dos lagunenses,
pronto para partir.
Ao jornal O
Albor enviou um cartão com os seguintes dizeres:
“Lúcio Duarte Valente, comandante do Vapor
Catalão, envia as suas despedidas, pedindo o obséquio de tornar público o seu
reconhecimento pelas muitas provas de carinho e afeto que recebeu do povo da
Laguna. Sem mais, subscrevo-me, admirador, amigo e obrigado”.
Eis o lagunense, sempre dando mostras de sua hospitalidade, principalmente nas adversidades. E isso lá no início do século XX.
Eis o lagunense, sempre dando mostras de sua hospitalidade, principalmente nas adversidades. E isso lá no início do século XX.
Deixados para trás
O jornal O Dia, noticia em sua edição de 2 de abril, que "Apresentaram-se na Capitania dos Portos da Capital, três tripulantes do Vapor Catalão, deixados na Laguna pelo respectivo comandante, em abandono sem pagar-lhes as soldadas". (salários). O capitão dos Portos de Santa catarina, capitão de corveta Tito Alves de Brito telefonou para a Capitania do Rio de Janeiro a respeito e conseguiu passagens para esses homens pelo paquete "Sírio".
Na edição de 2
de abril, O Albor noticiava que na mesma data em partiu o vapor "Nacional Oceano" com os salvados para o Rio de Janeiro, partiu também pelo "Max", este para
Florianópolis, o Inspetor da Alfândega, Vossio Brígido e o 2º escriturário
Demóstenes Veiga.
Na mesma
viagem seguiu o tenente João Costa Mesquita, comandante do 54º de Caçadores, “que
aqui permaneceu por alguns dias”, com seus soldados. Fez questão de comparecer
à redação do "O Albor" “agradecendo a maneira gentil porque foi tratado pelos
lagunenses”.
O telégrafo ligando o Farol ao centro da cidade
Nesta mesma
edição, O Albor noticiava que o capitão de Fragata Tito Alves de Brito, dos
Portos de Santa Catarina, solicitava ao governo Federal a instalação de uma
linha telefônica ligando o Farol de Santa Marta à Estação Telegráfica do centro
da cidade da Laguna.
O pedido tinha
razão de ser. O Farol, de tamanha importância para segurança marítima, ficava
isolado. Todo e qualquer acidente, principalmente naufrágios, uma constante naquela região, dependia
de comunicação via terrestre ou marítima pelo Rio Tubarão e Lagoa até ao centro
da cidade. Ou a cavalo, por caminhos quase sempre tomados por cômoros de areia.
Dois meses
depois, em 16 de julho, o telégrafo era anunciado para breve, ligando o centro àquela
localidade. Era a comunicação chegando finalmente à “região da ilha”.
Restos mortais do navio podem ainda ser vistos
Na Laguna
ficaram os restos do navio Catalão, a poucos metros ao sul do Farol de Santa Marta, defronte ao Ilhote do
Cardoso.
Com o tempo, o açoite do mar e os ventos, a embarcação foi se desmanchando, dividida ao meio, sendo engolida aos poucos pela areia do mar.
Com o tempo, o açoite do mar e os ventos, a embarcação foi se desmanchando, dividida ao meio, sendo engolida aos poucos pela areia do mar.
Seus restos, submersos,
tornaram-se um rico parcel e ainda podem ser observados em rasos mergulhos,
apesar da correnteza sempre perigosa. Quando o mar está calmo a silhueta do
navio pode ser vista da superfície.
Infelizmente não encontrei até aqui uma foto do navio quando do naufrágio ou mesmo anteriormente.
Infelizmente não encontrei até aqui uma foto do navio quando do naufrágio ou mesmo anteriormente.
O navio
Catalão se enquadra no conceito de patrimônio cultural subaquático, “definido
pela Unesco como todo resquício de existência humana que esteja submerso por
pelo menos 100 anos”.
Lá está, há
107 anos, resto de esqueleto carcomido pela maresia. Lá está, submerso numa
praia que lhe serviu de túmulo. Não singra mais os mares deste mundo, levando
riquezas e homens-marinheiros sonhando todos os portos.
Lá está, sobra
de uma história que se perdeu no tempo.
Parabens pela pesquisa Valmir. Laguna quantas histórias...
ResponderExcluirGeraldo de Jesus
Adoro essas histórias de navios, mar, naufrágios . Suelen Andrade
ResponderExcluirMais uma história de naufrágio. Dá pra fazer outro livro. Valeu. Resgatando o passado.
ResponderExcluirEdison de Andrade