sábado, 20 de outubro de 2018

O naufrágio do Vapor Catalão no Farol de Santa Marta

“Fazer jornalismo é produzir memórias”
(Geneton Moraes Neto)

Amanhecia naquela segunda-feira, 13 de março de 1911. Logo uma notícia correu como um rastilho de pólvora pela Laguna que acordava sonolenta para mais uma semana. Um navio havia naufragado na localidade do Farol de Santa Marta.

A embarcação se acidentou por volta das duas horas da madrugada, encalhando ao sul do Farol de Santa Marta, entre as Praias da Cigana e Cardoso, defronte ao Ilhote (que na verdade não é ilha) do Cardoso.
Desenho ilustrativo de um paquete a vapor do século XIX.
Imediatamente seguiram para o local o delegado de polícia da Laguna, Antônio Soares da Silva, dois guardas da Mesa de Rendas Federais e várias outras pessoas, curiosos em sua maioria, como sempre acontece quando se trata de acidentes.

O navio Catalão
Nas primeiras informações colhidas no local, soube-se que se tratava do Vapor Catalão, de 4 mil toneladas, que havia pertencido à Companhia Transatlântica Argentina, mas agora de propriedade da firma Darisch & Cia., do Rio de Janeiro. Era sua primeira viagem com bandeira brasileira. Vinha de Buenos Aires com destino ao Rio de Janeiro, Bahia e Pará.
O navio era um paquete, media 100m6cm de comprimento com 12m6cm de largura, construído pelo Estaleiro inglês Stephenson Robert & Co. Hebbun-On-Tyne, em 1889.
A tripulação, incluindo-se sua oficialidade, compunha-se de cinquenta pessoas.
Era comandante do navio, Lúcio Duarte Valente. Em protesto lavrado, informou que o acidente foi provocado “pela correnteza oceânica e a cerração que havia naquela fatídica noite”.

Carneiros, bois e vacas no porão
O carregamento constava de alfafa, charque, molhados e perfumaria. Não se achavam no seguro nem o casco do vapor nem sua carga.
Trazia também a bordo, em seus porões, cerca de 800 carneiros, além de 190 bois e vacas. Alguns desses animais de pura raça, como uma vaca holandesa e uma égua de puro sangue.
Muitos desses animais morreram na tentativa de salvamento, mas a maioria foi desembarcada ali mesmo, na praia, ficando solta nos campos vizinhos.

Um corpo embalsamado
Um fato curioso e deveras triste. A bordo vinha o corpo embalsamado da filha de um coronel de sobrenome Fragoso, que havia integrado a Casa Militar do ex-presidente do Brasil, Afonso Penna. “Falecendo em terra estrangeira quis ser sepultada em terra de sua pátria”. Certamente seu último desejo em vida. O jornal O Albor, de onde retirei a informação, não informa seu nome nem a causa mortis.
Já o jornal O Dia, de Florianópolis, edição do dia 18, informa que "O caixãozinho deu à praia no lugar do sinistro. Sabendo da ocorrência o governador do estado telegrafou ao superintendente Municipal da Laguna, Oscar Pinho, solicitando que o caixão fosse recolhido e posto à disposição dos parentes da criancinha".

Fiscalização
Em 16, chegava ao nosso porto o rebocador "Florianópolis", da Alfândega da capital do estado. Trazia o guarda-mor major Raul Tolentino, o escriturário Demóstenes Veiga, guardas e uma força de 20 praças do 54º Batalhão de Caçadores, de Florianópolis. O aparato era para fiscalizar, controlar saques e checar os muitos boatos que circulavam pela cidade, principalmente o de que a bordo do navio naufragado teria vindo grande quantidade de contrabando, principalmente o charque oriundo da Argentina.
Bem por isso a chegada de autoridades fiscalizadoras. O jornal O Albor também noticia que no dia 22 veio pelo navio “Meta”, proveniente de Florianópolis, o conferente da Alfândega Ignácio Mascaranhas. Dois dias antes já haviam chegado o inspetor da Alfândega, Vossio Brígido e o escriturário Sabino Espíndola Colombo.
Reclamações e queixas
O proprietário do Catalão, o armador Pedro Santerre Guimarães se queixava às autoridades do tratamento recebido. Numa carta enviada ao jornal O País, do Rio de Janeiro e publicada em 22, denunciava que muitos animais seus haviam sido abatidos ou se perderam; que seu vapor havia sido invadido, saqueado, com consumo de conservas/suprimentos que restavam.
Reclamava que a fiscalização da Alfândega queria enviar a carga para Florianópolis “com grandes dispêndios e prejuízos, quando tenho neste porto um vapor especialmente fretado para esse fim. O dono das cargas, que se acha presente, deseja reembarcar para o Rio, tomando o fisco as providências no lugar conveniente para acautelar seus interesses”.
E finalizava: “Vou lavrar um termo de abandono do vapor, protestando por perdas e danos causados”.
De fato, desde o dia 20 daquele mesmo mês, portanto sete dias após o incidente, estava atracado em nosso cais do porto do centro da cidade, o vapor "Nacional Oceano", também de propriedade de Santerre Guimarães. Era comandado por Estevão Lopes Maurício e aguardava o desenrolar dos acontecimentos com intuito de levar os salvados, tripulantes e oficiais do Catalão para o Rio de Janeiro, destino final e interrompido.

Divergências
Em sua edição de 19 de março o jornal O Dia noticia que de acordo com o guarda-mor da Alfândega, Raul Tolentino, os salvados até aquele dia foram: 140 vacas, 2 cavalos, 180 ovelhas e 65 volumes com mercadorias diversas. "Sabemos que 50 marinheiros vagueiam pela praia sem recursos".
Na edição do dia seguinte, o mesmo jornal informa que "mais 600 carneiros foram salvos (arrecadados), assim como mobílias, espelhos e alguns caixotes com seda".
Há uma informação importante também. A de que o Catalão (casco e equipamentos) teria sido vendido a negociantes da Laguna (sem citar seus nomes). O jornal O Albor, em 19, havia dito tratar-se de João Guimarães Pinho e Francisco Martins Cabral. O valor? 5:000$000 (cinco contos de réis). Numa conversão aproximada hoje com o nosso real, cada conto de réis equivaleria a cerca de R$ 120.000,00. 

Divergências
O Albor comenta que havia divergências entre o proprietário do navio naufragado, Santerre Guimarães, e os representantes do fisco.
Mas até o fim daquele mês, ao que se deduz tudo foi legalizado, ânimos acalmados, multas pagas, impostos e taxas recolhidos pelo transporte da carga, principalmente o charque. Os proprietários, do navio e da carga, devem ter entrado num acordo com os fiscais da Alfândega e regularizado todas as pendências. Não haveria outra saída, devem ter chegado à conclusão. Era isso ou o prejuízo total.
Em sua edição de 29 de março, O Dia informa que "o comandante do Catalão foi autorizado a reembarcar no "Oceano" a carga que vinha naquele vapor".

No dia 31, os salvados partem
No dia 31 de março, O Albor noticiava que do cais do velho porto, zarpava o vapor "Nacional Oceano", “conduzindo os salvados do paquete Catalão!”.
Lá se ia o que pode ser recuperado, além dos tripulantes e a oficialidade que por aqui ficaram hospedados 17 dias. O jornal não informa se todos os animais que foram salvos também seguiram nos porões ou se alguns deles ficaram para trás, negociados na praça.
E o corpo embalsamado da filha do coronel Fragoso? Nem uma linha do semanário. Imaginemos que também seguiu viagem em busca da paz do seu campo final de repouso, em sua terra natal.

“Acompanhando os salvados seguiu a bordo o sr. Colombo Espíndola Sabino, escriturário da Alfândega e um guarda”. Trata-se de Manoel Luiz Barbosa, de acordo com o jornal O Dia, de Florianópolis.
Com tudo o que aconteceu, a presença das duas autoridades certamente era uma garantia que a viagem seguiria até o Rio de Janeiro sem maiores paradas ou contratempos.

Um cartão, a guisa de despedida
No mesmo dia 31, a bordo do navio Oceano, o comandante do Catalão se despedia dos lagunenses, pronto para partir.
Ao jornal O Albor enviou um cartão com os seguintes dizeres:
“Lúcio Duarte Valente, comandante do Vapor Catalão, envia as suas despedidas, pedindo o obséquio de tornar público o seu reconhecimento pelas muitas provas de carinho e afeto que recebeu do povo da Laguna. Sem mais, subscrevo-me, admirador, amigo e obrigado”.
Eis o lagunense, sempre dando mostras de sua hospitalidade, principalmente nas adversidades. E isso lá no início do século XX.


Deixados para trás
 O jornal O Dia, noticia em sua edição de 2 de abril, que "Apresentaram-se na Capitania dos Portos da Capital, três tripulantes do Vapor Catalão, deixados na Laguna pelo respectivo comandante, em abandono sem pagar-lhes as soldadas". (salários). O capitão dos Portos de Santa catarina, capitão de corveta Tito Alves de Brito telefonou para a Capitania do Rio de Janeiro a respeito e conseguiu passagens para esses homens pelo paquete "Sírio".

Na edição de 2 de abril, O Albor noticiava que na mesma data em partiu o vapor "Nacional Oceano" com os salvados para o Rio de Janeiro, partiu também pelo "Max", este para Florianópolis, o Inspetor da Alfândega, Vossio Brígido e o 2º escriturário Demóstenes Veiga.
Na mesma viagem seguiu o tenente João Costa Mesquita, comandante do 54º de Caçadores, “que aqui permaneceu por alguns dias”, com seus soldados. Fez questão de comparecer à redação do "O Albor" “agradecendo a maneira gentil porque foi tratado pelos lagunenses”.

O telégrafo ligando o Farol ao centro da cidade
Nesta mesma edição, O Albor noticiava que o capitão de Fragata Tito Alves de Brito, dos Portos de Santa Catarina, solicitava ao governo Federal a instalação de uma linha telefônica ligando o Farol de Santa Marta à Estação Telegráfica do centro da cidade da Laguna.
O pedido tinha razão de ser. O Farol, de tamanha importância para segurança marítima, ficava isolado. Todo e qualquer acidente, principalmente naufrágios, uma constante naquela região, dependia de comunicação via terrestre ou marítima pelo Rio Tubarão e Lagoa até ao centro da cidade. Ou a cavalo, por caminhos quase sempre tomados por cômoros de areia.
Dois meses depois, em 16 de julho, o telégrafo era anunciado para breve, ligando o centro àquela localidade. Era a comunicação chegando finalmente à “região da ilha”.

Restos mortais do navio podem ainda ser vistos
Na Laguna ficaram os restos do navio Catalão, a poucos metros ao sul do Farol de Santa Marta, defronte ao Ilhote do Cardoso.
Os restos do navio Catalão, partido ao meio, defronte ao Ilhote do Cardoso,
ao sul do Farol de Santa Marta. Há divergências. Pode ser também parte do navio Aldabi,
naufragado anos depois, em 1937  e no mesmo local.
Com o tempo, o açoite do mar e os ventos, a embarcação foi se desmanchando, dividida ao meio, sendo engolida aos poucos pela areia do mar.
Seus restos, submersos, tornaram-se um rico parcel e ainda podem ser observados em rasos mergulhos, apesar da correnteza sempre perigosa. Quando o mar está calmo a silhueta do navio pode ser vista da superfície.
Infelizmente não encontrei até aqui uma foto do navio quando do naufrágio ou mesmo anteriormente.

O navio Catalão se enquadra no conceito de patrimônio cultural subaquático, “definido pela Unesco como todo resquício de existência humana que esteja submerso por pelo menos 100 anos”.
Lá está, há 107 anos, resto de esqueleto carcomido pela maresia. Lá está, submerso numa praia que lhe serviu de túmulo. Não singra mais os mares deste mundo, levando riquezas e homens-marinheiros sonhando todos os portos.
Lá está, sobra de uma história que se perdeu no tempo.

3 comentários:

  1. Parabens pela pesquisa Valmir. Laguna quantas histórias...
    Geraldo de Jesus

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  2. Adoro essas histórias de navios, mar, naufrágios . Suelen Andrade

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  3. Mais uma história de naufrágio. Dá pra fazer outro livro. Valeu. Resgatando o passado.
    Edison de Andrade

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