quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Professora Maria de Lourdes Barros: Uma Verônica inesquecível

 
Durante muitos anos que atravessaram décadas, a professora Maria de Lourdes Barros representou à comunidade cristã católica da Laguna a figura venerada de Verônica na Procissão do Senhor Morto, na Semana Santa.
Com sua belíssima voz de soprano, postada nos degraus de uma pequena escada defronte à igreja Matriz, emocionava a todos que a ouviam.
Maria de Lourdes Barros no alto, como Verônica. À direita na foto, as jovens
Sônia Brum, Maria de Lourdes Waterkemper e Marta Remor. Década de 1960.
Entoando o Responsório, o canto litúrgico com seus elementos harmônicos e polifônicos, ia desenrolando o manto sagrado representando o Santo Sudário que enxugou o rosto ensanguentado de Cristo na Via Crucis a caminho de seu calvário. Uma cena tradicional, melancólica e memorável. 

Breve histórico
Maria de Lourdes Barros nasceu na Laguna em 24 de junho de 1929, filha de Manoel Américo de Barros e Lucinda Fortes Barros. Irmã de Márcio, Marney, Manoel, Marcílio, Marilza e Marlene.
Seu pai era de São José (SC) e desde jovem veio para nossa cidade aqui militando como Escrivão no Fórum de Justiça durante 36 anos.
No Colégio Stella Maris onde fez seus primeiros cursos, Maria de Lourdes estudou canto orfeônico com as Irmãs da Divina Providência. Depois, foi aluna do Ginásio Lagunense.
Foi professora de Catequese nas salas de aulas situadas no prédio dos Vicentinos. Normalista, exerceu também o Magistério no Grupo Escolar Jerônimo Coelho, no Conjunto Educacional (hoje Escola de Ensino Médio) Almirante Lamego (Ceal) e no Colégio Comercial Lagunense (CCL).
Maria de Lourdes Barros no Coral
Santo Antônio dos Anjos

Foi uma das componentes fundadoras do Coral Santo Antônio dos Anjos, onde colaborou como diretora em várias gestões e atuou uma vida inteira com sua bela voz de soprano.
Pertenceu ao Conselho Municipal de Cultura na gestão do prefeito Mário José Remor/João Gualberto Pereira (1977-1982).
Ainda na década de 1980 foi responsável pela CRE (Coordenadoria Regional de Educação).
 
Cantas e me encantas
Numa crônica publicada em dezembro de 1975 no jornal Semanário de Notícias, dela falou o músico e maestro Agenor dos Santos Bessa:
“Você Maria de Lourdes Barros cantando, encanta e empolga!
Por que você cantando é subjugante. E como diria o poeta... quando cantas, me encantas!".
 
O incentivo nos cursos
Foi minha professora no Científico do Ceal no período matutino, como também do Técnico em Contabilidade do CCL, no período noturno.
No primeiro dia de aula, lá em 1975, Maria de Lourdes Barros se surpreendeu por eu estudar dois cursos diariamente, porque realmente era muito puxado. Mas logo me incentivou dizendo que, pelo pouco que me conhecia, tinha certeza que eu conseguiria chegar lá.
Não estava sozinho na empreitada. Os até hoje meus amigos Pedro Rosa Neto, Flávio Henrique Brandão Delgado e Zuleida Martins Rosa também enfrentaram o desafio, em séries diferentes. E também obtiveram êxito.
Valmir Guedes Jr. recebendo diploma em dezembro de 1977 das mãos da professora Maria de Lourdes Barros, no palco do Cine Teatro Mussi
Três anos depois quis o destino que fosse a professora Maria de Lourdes a escolhida a me entregar os dois diplomas de conclusão em cerimônias distintas realizadas no Cine Teatro Mussi. 

No programa Silvio Santos
Quando da participação de nossa cidade em 1978 no quadro Cidade X Cidade do programa Silvio Santos, professora Maria de Lourdes explanou no palco com sua inteligência e oratória sobre a nossa tricentenária Laguna.
Silvio, com sua “sensibilidade” peculiar disse que ela até parecia uma professora de capital! Rapidamente Maria de Lourdes pegou a deixa e respondeu:
-Realmente, sou professora de uma capital!
-Que capital? Indagou o apresentador entre surpreso e curioso.
-Da capital da República Catarinense!

E Silvio Santos com seus trinta e dois dentes ficou no ar ao vivo para todo o Brasil, tomando uma aula de história sobre a cidade Juliana e Santa Catarina, pois ele desconhecia o nosso passado barriga-verde. 

O desafio ao governador
O saudoso Munir Soares em uma de suas crônicas conta que a professora “na qualidade de cidadã lagunense soube reivindicar por sua terra”.
E contou Munir: “Um dia em plena Praça Vidal Ramos no Centro Histórico, num ato político com centenas de correligionários e a presença do governador Antônio Carlos Konder Reis, a professora Maria de Lourdes Barros pediu a palavra e desafiou o primeiro mandatário catarinense:
-Governador, Laguna tem problemas e reivindicações de longa data. Um desafio que os políticos teimam em ignorar. O senhor, governador, aceitaria o desafio da Laguna?
Konder Reis aquiesceu e disse que aceitava”.
Bem. Laguna continua um desafio, mesmo depois de passados todos esses anos.
 
Voz inesquecível
Ainda hoje ao ouvir a canção “Creio em Ti” relembro sempre da voz inesquecível de Maria de Lourdes Barros quando a interpretava em missas e nas trezenas de Santo Antônio dos Anjos.
Minha esposa Julita que foi testemunha ocular e auditiva do fato que narro a seguir, conta que Maria de Lourdes já enferma e bem debilitada cantou “Creio em Ti” em público pela última vez numa novena. Seus já fracos pulmões e o fervor do momento não a deixaram prosseguir e sua voz embargou. Foi quando a também professora Maria José Maurício rapidamente intercedeu e finalizou o “Creio em Ti”.
A emoção de quem presenciou a cena e/ou sabia o que estava ocorrendo nos bastidores foi tamanha que levou muitos fiéis às lágrimas.
Maria de Lourdes Barros faleceu aos 62 anos, em 9 de março de 1992, entristecendo a comunidade lagunense que sentiu a perda de uma grande mulher que tanto fez pela educação e cultura de nossa terra.
Quem assumiu a figura e o papel de Verônica por muitos anos foi a professora Maria José Maurício. Atualmente, quem exerce a função com sua linda voz é a também professora Neusa Maria Preuss, integrante do Coral Santo Antônio dos Anjos.

Homenagem
Em 2011 a sobrinha de Maria de Lourdes, a jornalista Lúcia Maria Barros da Silveira, filha de sua irmã Marlene com Álvaro Silveira Júnior, escreveu belo e emocionado texto sobre sua tia, contou a vivência ao seu lado e as lembranças vívidas da representação da Semana Santa.
O texto originalmente foi publicado naquele mesmo ano no Blog do professor Márcio José Rodrigues estampando a imagem de Verônica de El Greco, de 1559.
Tomo a liberdade de reproduzir o escrito aqui na minha página, mas usando lá em cima, na abertura, uma rara foto há muito tempo procurada em meus arquivos e só agora encontrada, que mostra a Verônica Maria de Lourdes Barros desempenhando sua função, defronte à igreja Matriz.
Lúcia Maria um ano e alguns meses depois da publicação de sua crônica, faleceu repentinamente em 28 de setembro de 2012 em Florianópolis, vitimada por um infarto.
Ela intitulou sua crônica:

 Minha Verônica

Por Lúcia Maria Barros da Silveira

“Não adianta!
Por mais tempo que passe, há lembranças das quais nunca nos desfazemos.
Na minha Laguna querida na casa onde cresci morava a Verônica. Quanto encantamento era isso. Minha tia Lourdes desde sempre em minha vida, durante essa época de quaresma tomava a si esse personagem tão essencial para nós cristãos católicos.
Já sabíamos que a procissão de Passos estava por chegar quando começávamos a ouvir, do segundo andar de minha casa, os ensaios solitários de nossa amada Verônica.
Soprano exímia e nata tinha em seu cantar o poder mágico de encantar.
Mas, como Verônica seu canto se transformava no lamento tão conhecido por gerações de lagunenses.
Desde pequena tenho fascinação por essa época do ano.
Via a capa da Verônica chegar em casa para ser limpa. Passava as mãos lentamente no veludo azul escuro com aplicação em dourado nas bordas. Sentia uma emoção tão grande de ter tão perto esse objeto que dava identidade à figura central do grande teatro cristão realizado a céu aberto relembrando e reverenciando as dores de nosso Senhor.
Ainda criança, ia para a sala atrás da sacristia onde as figuras se vestiam. Vi muitas moças se transformarem em Madalena e São João, outras em beús. O canto das beús até hoje vem claro a minha mente.
Quem nunca se arrepiou ao ouvir as batidas no chão das lanças dos centuriões?
Minha Verônica começava sua preparação cedo. Ia ao salão, pois seu penteado era especial. Colocava um pequeno aplique que guardava com muito cuidado.
Praticamente sem maquiagem, no começo da noite ia para igreja.
Lá começava sua transformação. O camisolão de branco impecável era vestido. Já com a linda tiara de pedrarias na cabeça esperava a hora de começar.
Dado o sinal, apanhava o mítico manto e o vestia.
Pronto!
Com o sudário enrolado em suas mãos, já não era mais minha tia, era sim, a dolorosa figura daquela que enxugou o santo Rosto em seu calvário.
Vivi os bastidores dessa tradição centenária por mais de uma década. Mas o melhor ainda viria.
 No ano de 1982, com 18 anos, recebi o honroso convite para ser Madalena. E vivi momentos inesquecíveis. Com o vestido cuidadosamente elaborado por dona Natália, costureira exímia, passei de observadora a protagonista da centenária tradição. Ao lado de minha Verônica acompanhei as procissões de Passos e do Senhor Morto.
Posso afirmar que é algo glorioso. Sou grata a Deus por ter me dado essa chance.
Ver minha Verônica cantar ao meu lado aquele som sentido, aquela voz abençoada, aquela cidade em suspense.
Memorável.
Vivi poucos momentos que se comparem àqueles.
Foi o último ano que minha tia cantou como Verônica.
Despidas de nossas personagens naquela quaresma já tão distante voltamos solenes para casa.
A experiência tinha me tocado profundamente.
Saímos pelas ruas de nossa cidade, lado a lado, como Verônica e Madalena e sacramentadas, voltamos para nossa casa como Maria de Lourdes e Lúcia.
Mas aquela quaresma tem estado em mim em todas as quaresmas que se seguiram.
A Madalena que fui, vivi aqui dentro e minha Verônica vive, em nós todos nós para sempre”.

19 comentários:

  1. Show! Quantas histórias Valmir. É a memória do nosso povo e cidade.

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    1. A nossa Laguna é mesmo muito rica. Haja tempo, memória e pesquisas pra gente contar. Agradeço a leitura e comentário.

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  2. Geraldo de Jesus01/09/2022, 13:39

    A conheci. Realmente tinha uma linda voz. Ótima professora.

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    1. Realmente. São personagens que passaram pelas nossas vidas e deixaram marcas. Agradeço a leitura e comentário.

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  3. Linda história. Uma das inteligências da nossa terra. Ótima professora.
    Agora Valmir, que cabelão hein? Que beca!

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    1. Agradeço a leitura e comentário. Pena a não identificação. Sim, sim, o cabelo era moda. E o terno era made in Romer do seu Caseca. E a foto não mostra mas o perfume era um banho de Lancaster.

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  4. Manoel Américo Barros Filho01/09/2022, 14:42

    A par o mérito que se possa ter, tem que ser grande o coração de quem se lembra de homenagear.
    Tocado pela homenagem à minha irmã te abraço. Manoel, irmão e afilhado.

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    1. Ela merece por tudo que deixou gravado em nossas vidas e pelos serviços que prestou à comunidade lagunense nas áreas de educação e cultura. Fico feliz por ter sido seu aluno.
      Agradeço a leitura e comentário do irmão Manoel e que tão bem representou Laguna no estado em seu campo profissional. Aliás, a inteligência e educação são características natas da família.

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  5. Homenagem maravilhosa!

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  6. Terminei de ler , extremamente emocionada. Quantas lembranças! Apresentaram-se nítidas , aumentando a emoção. Obrigada, Valmir!

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    1. Realmente minha amiga Zuleida, texto da Lúcia Maria de emocionar. Quantas lembranças mesmo. Passa um filme na cabeça da gente. Agradeço a leitura e comentário.

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  7. Parabéns meu amigo Walmir, por tão bela e merecida homenagem

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  8. Que lindo. Adorei. Tive o prazer de cantar com dona Maria de Lourdes no coral Santo Antônio.

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  9. Valmir, digno o registro e a homenagem a tão ilustre figura de cidadã, professora, religiosa, mulher culta, que tanto emocionou Laguna nas suas aguardadas interpretações. Abraço

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    1. Realmente meu caro Adolfo, merecidamente. Agradeço a leitura e comentário.

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  10. Estou muito emocionada ao ler esta reportagem ,linda e maravilhosa ,destas pessoas que sempre relembro quando converso com minha irmã, quantos anos já se passaram...mas permanecem muito presentes em minha memória 🙏🏻😥😥😥

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  11. Pedro Rosa Neto02/09/2022, 16:19

    Boa tarde Valmir
    Obrigado por lembrar de mim; era dureza mesmo fazer os dois cursos com os professores excelentes que lecionavam: Elza, Sérgio Nacif, Jairo Baião, Toninho perna reta, Ivo Perin...
    Mas a professora merece a homenagem pelo ser humano que era e pela habilidade de tudo fazer muito bem. Não conhecia o texto da sobrinha.
    Grande abraço.

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  12. Flávio Brandão Delgado02/09/2022, 16:21

    Que legal. Na época todos nós já éramos sedentos por conhecimento. E grandes mestres. Obrigado por tu não deixares a história da educação lagunense se perder. Abraços.

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  13. Paulo Sérgio Remor03/09/2022, 12:08

    Valmir, belo texto e fantástico depoimento de Lúcia. Lembro-me dela quando éramos jovens.
    A D. Maria de Lourdes, realmente, tinha uma belíssima voz e tive o privilégio de, algumas vezes, ouvi-la cantar. A foto me emocionou, pois relembrei de minha tia Marta, minha primeira professora, Mais uma vez parabéns pelo Blog. Grande abraço.

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