Defronte à pequena Praia do Iró, na rua Luiz Severino Duarte,
sobre um bloco de pedras, existe hoje uma pequena caverna conhecida pelos mais
antigos como a gruta da Genoveva. Lembro que há 35, 40 anos, quando pescávamos
no local em nossa turma, era ali que nos abrigávamos das chuvas repentinas.
O local em frente era dos mais piscosos, com seus mariscos e
siris, que no recuo das ondas ficavam na areia ou nas reentrâncias das pedras,
lá embaixo. Com um molinete muito papa-terra pesquei por ali, local perigoso onde
qualquer escorregadela era fatal. Com o passar dos anos e recuo do mar, a prainha
se formou e ficou um baixio. Em maré vazante hoje praticamente se atravessa a
pé, defronte ao costão.
Dizem os mais antigos que antes da abertura da via que passa
pelo local, existiu uma enorme caverna, em dois cômodos, cortada ao meio quando
surgiu a estrada. Nela morou uma senhora franzina, que pedia esmolas pela
cidade carregando sempre um ramalhete. E ouvi muitas estórias sobre ela, inclusive
que teria sido uma feiticeira que preparava suas próprias poções numa grande
panela de ferro.
O saudoso José Bessa, em seu livro Gente da minha terra - Memórias da Laguna, escreveu
belo texto sobre a Genoveva da gruta. Nela, em licença poética, discorreu sobre
quem teria sido a mulher. Sem dúvida daria um filme ou no mínimo um
documentário.
Mas Bessa salienta, ao final, que gostaria que a história da
Genoveva tivesse sido como ele narrou. “Mas, a realidade como a vida, na
maioria das vezes é vazia, não oferece grandes lances”. Belas palavras e
verdades de José Bessa.
Querem ler a citada crônica? É extensa para os padrões de hoje, mas linda. Pois aqui está:
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A Genoveva da Gruta
Por
José Bessa
A gruta
ficava à beira da praia, nos rochedos do costão. Nessa época o mar vinha cá em
cima, batia sobre a escarpa em rampa suave e subia, lambendo com a espuma
branca o lajeado vermelho. Lá na ponta, os mariscos pretos, uma franja de limo
verde. Depois o mar resolveu recuar, abandonando por completo suas visitas à
encosta inclinada. Em cima como um comandante atento às atividades dos seus
subordinados, ficava a gruta, uma enorme laje de pedra, com quatro a cinco metros
de altura e uns vinte de comprimento, apoiada em alguns pontos sobre outros
blocos de granito rosa-encarnado, fechado por trás, formando uma grande caverna.
Um pouco à
esquerda abaixo, começa, ou terminava uma praia, deserta de casas e de gente,
rica em peixe e frutos do mar. Sua imponência, de uma beleza rude e bruta, com
areia fina e branca, cômoros que se deslocavam ao sabor dos ventos dominantes.
Nas ventanias do nordeste que assobiava assustador entre as frestas da gruta, a
praia e a encosta tornavam-se mais horrivelmente belas, na força do vento, na
violência do mar, no passeio da areia seca, voando a pouca altura, castigando
as pernas nuas das pessoas. A cada obstáculo se amontoavam. O paralelismo das
ondas que se formam na quebrada da maré, com a espuma na crista que se desmancha
na praia, ao longo daqueles quilômetros de extensão, numa monotonia que não
cansa, sempre a despertar a curiosidade, como se repentinamente surgisse das
profundezas do oceano o monstro Titã para devorar Andrômeda.
É a praia,
mais as encostas escarpadas, sucedidas pelos morros verdes, para novamente
voltar à restinga de areia bege.
É a solidão
de quem não está só. Parece haver fantasmas familiares por toda parte nos
acompanhando. É triste na sua imensa amplidão que nos farta de um sentimento de
liberdade, gostosamente melancólico. Nada mais do que céu, mar e areia, mas
parecem esconder surpresas que poderão surgir a qualquer momento; nos fala
muito intimamente de fantasias sexuais, aventuras incríveis por acontecer.
Próximo, no
alto do morro, onde hoje está um belíssimo hotel, havia uma casa para doentes
contagiosos, conhecido como “Lazareto”. Era comum na época, os navios chegarem,
trazendo portadores de males transmissíveis. Levavam imediatamente para serem
ali isolados. Quem sabe, hoje, quantos fantasmas dormem naqueles ricos
apartamentos?
Ilustração: Joris Marengo/Livro Gente da Minha Terra |
A gruta lá
está, impassível, dura, indiferente, como se perscrutasse a tudo e a todos. Não
sente, não fala, mas, compõe magnificamente bem a paisagem. Dentro, mora uma mulher.
Chama-se Genoveva, dando o nome ao local, a Gruta da Genoveva.
A natureza,
caprichosa ou caridosamente, montou quarto e sala. Um espaço mais amplo na
entrada e ao lado, meio escondido, um vão menor. No centro da sala uma pequena
fogueira e atrás dela, com um olhar enigmático, a mulher, velha, enrugada de
franzir o senho para enfrentar o vento salgado, bronzeada dos sóis de inverno e
verão.
Sua origem,
ninguém sabe, ela não conta.
Como pode
viver ali? Ninguém se importa em saber. Vive de siris, mariscos e peixes,
acompanhados quase sempre de pirão de farinha de mandioca e, quando possível
uma xícara de café com um pedaço de pão seco. Algumas vezes esmola pela cidade,
afastada uns cinco quilômetros, amparando-se na caridade alheia. Ao passar pela
praça entra na igreja. Posta-se ereta, fecha os olhos numa atitude de quem está
orando. Certa vez um cidadão muito carola, chamou-lhe a atenção rispidamente,
mandando ajoelhar-se para rezar. Respondeu – e quem lhe disse que estou rezando
de pé?
Nunca se
soube de qualquer ato de banditismo praticado contra ela, vivendo naqueles
ermos. Que se saiba possui duas poderosas armas de defesa: a lenda de ser uma
poderosa feiticeira e um cheiro forte de restos de peixe, cascas e outros dejetos
jogados por ali. Quando pela cidade, Genoveva exalava um cheiro agradável, mistura
de ervas. Na verdade, há um córrego descendo o morro e passando próximo à
gruta, possibilitando-lhe certa higiene e servindo para abastecer de água doce
as suas panelas muito pretas, sobre o fogão no chão, próprias para um bom
feitiço. Nunca se soube como ela resolvia suas necessidades fisiológicas.
A sua
aparência não é das mais simpáticas. Mais alta do que baixa, magra, nariz
avantajado, rosto fino, tez muito clara, cabelos lisos desalinhados e
descuidados. Diziam que era inglesa ou descendente de ingleses e o seu
verdadeiro nome, Jane. Quando moça, contavam, veio para o Brasil, casada com um
engenheiro de minas, brasileiro, que esteve fazendo curso na Inglaterra. Morou
muitos anos no sul do estado, onde o marido trabalhava em minas de carvão. Teve
quatro lindas louras crianças, às quais dedicava toda a sua desambientação no país.
Amava-as duas vezes: amor de mãe e de estrangeira que não se adaptou bem à nova
terra. O marido compreendia o desajuste e tudo fazia para amenizar a situação.
Os tempos
passaram e uma tragédia num choque entre o automóvel da família e o trem,
deixou-a só no mundo. Não conseguiu reunir forças sequer para voltar ao seu
país. Desesperada, fechou-se cada vez mais na sua desdita e foi perdendo aos
poucos a razão. Quando avistava um grupo de crianças parecia recobrar o equilíbrio,
para, em seguida, voltar à sua apatia. A companhia onde seu esposo havia
trabalhado, foi até certo ponto condescendente e compreensiva, mas acabou tomando-lhe
a casa destinada ao novo engenheiro que veio substituir o seu marido. A
princípio pessoas caridosas a recolheram. Depois saiu vagando e desapareceu por
muito tempo, ou quem sabe, para sempre.
Anos mais
tarde surgiu aquela mulher na beira do mar, falando com certa dificuldade, com
todas as características de uma estrangeira. Julgaram ser a inglesa. Esta
suspeita se tornava quase certeza quando à vista de uma criança loura seu semblante
se transformava, parecendo adquirir uma nova vida.
Os grupos
escolares costumavam fazer piquenique na praia nos dias ensolarados de outono e
primavera. Numa das vezes, o tempo quente convidava a um banho de mar e duas
meninas com idade de dez anos, burlando a vigilância das mestras, entraram na
água e foram colhidas por traiçoeira corrente. Uma agarrada à outra debatiam-se
desesperadamente, enquanto apavoradas colegas e professoras, da praia a tudo
assistiam impotentes. Chegaram a entrar no mar, mas sem coragem de enfrentar as
ondas traiçoeiras.
Genoveva,
de dentro de sua gruta foi alertada pelo alarido, pois, ainda, não havia
percebido a presença da excursão. Exímia nadadora e profunda conhecedora das
manhas do mar e suas correntes traiçoeiras, em poucos minutos alcançou as crianças
e contornando a saída d’água, trouxe-as tranquilamente à praia. As pequenas não
sofreram mais do que um grande susto.
O fato,
muito comentado, tornou-se por demais conhecido. Genoveva perdeu o sossego.
Passou a ser visitada com frequência. Os pais das jovens resgatadas mostraram
muita gratidão, trazendo-lhe ajuda de toda espécie, mas, dali ela não quis sair.
Sua vida mudou. O seu próprio drama já adormecido, como guardado nos compartimentos
do seu cérebro, despertou, foi trazido para fora. A depressão aumentou. Seu ato
heroico, que bem poderia ter melhorado suas condições de vida, ao contrário,
deixou-a prostrada.
Naquelas
bandas eram comuns os temporais de leste, a chamada lestada. São sete dias, no
mínimo, de chuva com vento do mar que, ao final, se torna intermitente,
enquanto as rajadas mudam constantemente de direção.
Foi durante
um período desses, de chuva fina fustigada pelo vento forte que Genoveva
desapareceu. Ao longo da costa, a dezenas de milhas de distância, fica uma ilha
deserta. Há quem afirme que a viu nadando para lá.
A gruta
ficou abandonada durante muitos anos, servia de refúgio para pescadores e
excursionistas, até que um raio deslocou um dos apoios e a enorme laje ruiu
fragorosamente, fazendo um tremendo estrondo. Ainda bem que não haviam pessoas
no seu interior, abrigando-se da tempestade, o que era comum.
Com o
progresso foi construído um belíssimo hotel nas proximidades do local onde
ficava a gruta e com isto a necessidade de uma estrada de acesso em boas
condições, cujo traçado cortou aquela laje que havia sido o teto da Genoveva,
em forma de caixa e que ainda hoje pode ser vista em duas partes, com a rodovia
ao meio.
Desapareceu
parte da cena que abrigou uma grande dama, a ser verdadeira a identidade da
Genoveva, a coincidir a sua loucura mansa com o desvairamento da inglesa Jane.
Pouco restou do espaço onde viveu um cérebro ansioso por encontrar explicação
para uma aparente injustiça dos Céus, a destruição de sua família.
Os homens,
com o desenvolvimento, trocaram a beleza agreste pelo conjunto de instalações
balneárias capaz de atrair turistas de todo o mundo e que sepultou para sempre
as cinzas e o carvão que restou das fogueiras que mantinham aquecidas nas
noites de inverno a Genoveva.
A
verdadeira história de Genoveva é um pouco diferente. Ela era baixinha, andava
sempre com um ramo de flores seguro nas duas mãos e completamente
desequilibrada mental. Morava na gruta, isto sim. Gostava de rezar na igreja, é
verdade. E é uma pena que a sua verdadeira vida não tenha sido a que foi
contada antes. Assim eu preferia que fosse. Teria sido muito bonita, mais
recheada de fatos. Mas, a realidade como a vida, na maioria das vezes é vazia,
não oferece grandes lances. As únicas coisas que tornavam a Genoveva diferente
era morar na gruta e ser demente. E assim fica muito triste!
Que linda e triste história Valmir.
ResponderExcluirJosé Bessa soube contá-la e obrigado por reproduzi-la.
Dá um documentário mesmo.
Edson de Andrade