A primeira
greve (paralisação) de serviços que aconteceu na Laguna e que ficou registrada
em nossa imprensa, aconteceu em 1902.
Quem a organizou foram os chamados (na época) aguadeiros, os carroceiros que
transportavam água da Fonte da Carioca em pipas e a comercializavam porta em porta aos moradores
e comerciantes lagunenses, na hoje chamada venda em domicílio.
“-Não há água!
Não há água!”
Era
segunda-feira, 24 de março de 1902. Laguna amanhecia sonolenta, acordando aos
poucos para iniciar a semana. Uma Semana Santa pelo calendário católico, saliente-se.
Moradores,
comerciantes e populares nas ruas eram surpreendidos por um desfilar de
carroças em fila indiana pelas ruas da cidade, conduzidas, logicamente, por
seus muares e cavalares e respectivos motoristas.
O cortejo deve
ter cruzado toda a extensão da rua Raulino Horn, descido a Conselheiro Jerônimo
Coelho e retornado pela rua Gustavo Richard, as vias mais movimentadas do
centro da velha cidade.
Dezenas de
aguadeiros gritavam:
-Nâo há água!
Não há água! protestando pelo racionamento do líquido buscado à Fonte da
Carioca.
A contenção na
entrega d’água nas torneiras da Carioca pelo zelador havia sido decretada pela
municipalidade, através do superintendente (prefeito) coronel José Fernandes
Martins.
O ato visava
economizar o líquido devido à seca que vinha assolando toda a região sul do
estado desde o ano anterior. Naqueles dois primeiros meses do ano de verão não
havia chovido uma gota sequer.
O racionamento
de entrega de água na Carioca diminuía, obviamente, os ganhos daqueles
profissionais autônomos que vendiam à população, em domicílio, a água retirada
da tradicional fonte. Bem por isso o protesto.
Números de pipas
O jornal O Albor de 13 de março de 1902, portanto
dez dias antes da greve, informava que os aguadeiros venderam em janeiro e
fevereiro daquele ano, 1.676 pipas d’água. Cada uma delas transportava 480
litros.
Foram
comercializados 804.480 litros naqueles 60 dias iniciais do ano. Uma média de
400 mil litros mensais.
Infelizmente
não é informado o número existente de carroças aguadeiras na cidade e não
sabemos qual era média de litros retirados em anos anteriores.
Saul Ulysséa
em seu livro “Laguna de 1880” (pág. 17), conta que no ano que dá título a sua
obra “As carroças d’água eram cinco ou seis que forneciam água à população a 40
réis o pote. Não usavam latas, mas barris de madeira com arcos e asa de ferro,
padronizados pela Câmara Municipal”.
Ulysséa também informa em sua obra (pág. 93): "Como não havia chafariz na praia e para evitar despesas com carroças, a aguada para os navios era feita em pipas conduzidas pelos marinheiros: pipas pintadas de branco com arcos de cores vivas, principalmente encarnada, que eles enchiam na Carioca e rolavam pelas ruas até os trapiches".
Vinte e dois
anos depois, em 1902, ano da greve, o número de aguadeiros deveria ser bem
maior, mas não ficaram registros da quantidade.
Convocação e fim da greve
Houve quem
reclamasse da atitude dos grevistas, taxando-a de desnecessária, precipitada e
oportunista.
Outros moradores
eram solidários à paralisação, aliás, como sempre acontece nesses atos de protesto.
Além da seca,
alguns entendidos atribuíam a diminuição do fluxo d’água na Carioca à
construção no local em 1898 de alguns pilares e um muro de pedras para
contenção das enxurradas.
Logo os
grevistas foram convocados para uma reunião com o Conselho Municipal e o superintendente
que explicaram da necessidade da racionalização d’água: ou era isso ou nada
mais seria retirado da Fonte da Carioca até sua normalização.
Com tão "democrática" decisão a greve foi encerrada no mesmo dia.
Encerrada com
a promessa de criação de uma comissão que seria formada por profissionais
gabaritados para estudar o problema, quais suas causas e possíveis soluções,
exarando assim um parecer.
Comissão de Estudos
A comissão foi
formada pelos engenheiros João Carlos Greenhalg e Joaquim Dias da Cunha.
Dias depois,
estudado e analisado o problema, os dois profissionais elaboraram um relatório
que foi entregue ao superintendente.
Nele
concluíram que a causa maior da diminuição do fluxo d’água na Fonte da Carioca
era realmente a ausência de chuva.
Descartaram a
construção no local de pilares e muros de contenção como causas influenciadoras.
Sugeriram que
o desmatamento dos morros que circundam à Carioca fosse proibido com medidas
enérgicas, através de multas e prisões dos infratores.
E que fosse
feito nos morros o plantio de mudas de árvores de rápido crescimento.
E terminava o
relatório com a proposta do aumento das dimensões da caixa de captação e/ou
construção de um reservatório maior.
Desmatamento dos Morros
O desmatamento
dos nossos morros sempre foi uma preocupação constante das autoridades
lagunenses no passado.
Os jornais de
nossa cidade ao longo do século XX trazem várias reportagens-alertas sobre o
problema. Isso quando nem se falava em meio-ambiente, ecologia e preservação
ambiental.
O grande
problema naqueles anos era que muitos moradores na falta de condições ou até mesmo
por economia, não compravam para seus fogões as achas de lenha que chegavam dentro
dos porões de canoas nas docas.
Era barato e
simples atacar as árvores dos morros que circundam a cidade, ato que provocava
desmatamentos.
Para fugir à
fiscalização se criavam vários golpes. O jornal O Albor alertava sobre um deles:
“A fim de
evitarem ruídos, muitos lenhadores servem-se de serrotes e trazem a lenha à
noite”.
O
superintendente então fez valer sua autoridade dando ordens aos zeladores para
que fiscalizassem o desmatamento dos morros da cidade.
“Acompanhado
de um praça (policial), o zelador Antônio Fernandes Machado percorre
diariamente os morros, a fim de punir os infratores”, informava o jornal.
Era para chover de mansinho, como na canção
Com a seca
prolongada, devotos oravam por chuva para amenizar a situação e havia mesmo
quem fizesse promessas aos santos. Missas foram rezadas nesse intuito pelo vigário
Pe. Manoel João, conforme registram os jornais da época.
É bom lembrar
que naquele mês de março a imagem de Santo Antônio dos Anjos estava longe,
levada ao Rio de Janeiro para ser encarnada (restaurada), conforme já contei
aqui. Irá retornar em julho daquele ano, depois do dia em sua homenagem.
Mas foram
tantos os pedidos ou alguém dançou a dança da chuva tão bem dançada, com tanta
devoção, que São Pedro atendeu aos pedidos, ouviu às lamúrias da população.
E a chuva
veio. Muita. Chuvas torrenciais que inundaram a cidade.
Choveu todos
os dias e bastante no domingo, 6 de abril e terça-feira, 8 de abril daquele
ano. Eram as águas de março atrasadas caindo no início de abril e fechando o
verão. Com isso a situação da Carioca se normalizou.
Mas a chuva
foi tanta que logo o povo começou a suplicar que ela cessasse. Que São Pedro
fechasse as torneiras do céu.
“Águas em cataratas, de plúmbeas alturas e
flamíneos raios”
Com isso,
pelas páginas do O Albor, alguém se
utilizando do pseudônimo Armando de Clemont dizendo que escrevia da cidade da Laguna,
“nas vizinhanças do mar gemente”, salientou a contradição do ser humano, sua
inconstância e eterna insatisfação de desejos.
Pela beleza do texto poético, o transcrevo:
“Água! Água! –
era o clamor geral!
Água! Água! –
era a prece fervorosamente dirigida ao Senhor.
Água! Água! –
era o desejo veemente da população, ao ver decrescer o precioso líquido na
principal nascente de nossa terra.
Água! Água –
era a aspiração ardente do lavrador, ao verificar que as plantações, tão
esperançosamente feitas, feneciam à mingua de chuvas, queimadas pelos raios
ardentes do sol!
Clamor, prece,
desejo, aspiração, foram após longo tempo finalmente ouvidos... E domingo à
noite – noite sombria – e terça-feira de dia – dia tenebroso, abriram-se as
cataratas do céu e a água – água abundante – água em catadupas – despenhou-se
das plúmbeas alturas sobre a cidade sequiosa.
Então, vendo
que Deus atendera as suas constantes súplicas... acoimaram-no de prodígio e
água! água! não foi mais o clamor geral; a prece fervorosamente balbuciada; o
desejo veemente da população, a aspiração ardente do lavrador, que agora receia
que as chuvas lhe matem as plantações tão esperançosamente feitas!
Clamor, prece,
desejo, aspirações, foram então substituídos por:
-Basta,
Senhor! Basta!...
E Deus – bom e
compassivo – ouvi-os de novo e de novo o sol ardente dardejou sobre a terra os
flamíneos raios!...
São assim os
homens! Sempre insatisfeitos, sempre contraditórios, sempre volúveis!...
Humanidade!
Humanidade!
Quando te
julgarás satisfeita?!... Quando deixarás de ser inconstante?!... Quando
deixarás de ser a eterna contradição?!...”.
Providências pelo governo
Mas a seca
prolongada de 1901/1902 que tanto fustigou a população lagunense não foi
esquecida. Tanto é verdade que o jornal O
Commercio de 5 de julho de 1903 relembrava:
“Ainda é bem
recente o período angustioso que atravessou a população por ocasião da falta
d’água”. E foi essa
triste lembrança que levou o novo superintendente municipal da Laguna José
Maurício dos Santos a se decidir em outubro de 1903 pela construção de um novo
reservatório na Carioca, ampliando-a, conforme sugestão daqueles dois
engenheiros um ano antes.
E assim, um
mês depois, em novembro daquele ano, iniciaram as obras do novo reservatório da
Carioca pelo lado sul, com direção dos trabalhos a cargo de Manoel Pinho (médico) e
Polydoro Olavo Santiago, com planta e desenho do frontispício de Frederico
Selva, os dois últimos engenheiros na construção dos Molhes da Barra da Laguna.
O chafariz do Mercado
Outra obra
também foi construída nesta época. Trata-se de um chafariz ao lado do Mercado
Público para abastecer moradores, comerciantes e navios no cais do porto com
água da Carioca através de encanamento sob o leito da rua Tenente Bessa, assim
encurtando distâncias e dispensando o transporte pelos aguadeiros.
O jornal O Commercio de 24 de julho de 1904
informava:
“Acha-se
concluído e entregue ao público o chafariz construído pela Intendência
Municipal, na rua da Praia ao lado do Mercado.
É de
construção simples e elegante, cheio de ornatos, contendo duas torneiras cujas
águas são lançadas em duas bacias de cimento.
O desenho foi
feito pelo sr. Frederico Selva e a obra executada pelo sr. Marcos Gazola”.
A jarra
superior veio do Rio de Janeiro pelo vapor Industrial, como registrou o mesmo
jornal.
Gazola também
será o responsável pela construção do chafariz do Jardim Calheiros da Graça,
dali a alguns anos, em 1915.
Com o incêndio
do Mercado em 1939 e a construção do novo, inaugurado em 19 de janeiro de 1958, onde terá ido parar esse
Chafariz? Foi derrubado? Que fim levou? Quem o levou?
A nova caixa
d’água da Fonte da Carioca comportava 48 mil litros e foi inaugurada em 1906. A
mais antiga acolhia apenas 8 mil litros.
No que o
jornal O Albor de 12 de agosto
daquele ano registrou, já fazendo jus a fama que atravessa os séculos desde então:
“A Carioca da
nossa água afamada, generosa dádiva da providência, de cuja posse tantos nos
orgulhamos”.
Bem por isso o
prédio da Fonte da Carioca, construído em duas etapas, tem as datas em seu frontispício de: 1863 e 1906.
Que história hein Valmir. Não sabia dessa greve nem porque a Carioca foi construída em duas etapas. Valeu.
ResponderExcluirA gente vai aprendendo junto. Abraço
ExcluirMuito boa a matéria. Extensa mas interessante. Acho que a Carioca dá um livro. Hehehe. Abraços.
ResponderExcluirRosângela
Dá mesmo. Aliás, acho que muitos assuntos na nossa Laguna dão livros. Festividades religiosas, esportes, clubes, associações, etc.
ExcluirGrato pela leitura.
Amigo Valmir, não conhecia tanto pormenores da história da Nossa Terra. Merecia estar nos Curriculuns escolares.
ResponderExcluirAbraço
A cada pesquisa a gente vai descobrindo essas preciosidades, professor.
ExcluirAbraço. Agradeço a leitura.
Parabéns pela excelente reportagem que, didaticamente nos abrilhantou que mais um episódio de nossa amada Laguna.
ResponderExcluirNossa Laguna sempre repleta de episódios. É uma joia rara.
ExcluirGrato pela leitura.
Bom dia. Parabéns por mais essa aula de história sobre a nossa cidade. Que coisa inusitada e que se perderia no tempo, não fossem as suas pesquisas. Que maravilha é o conhecimento. Lembro quando criança, no final dos anos 70, de uma carroça que passava com aquela buzina parecida com a do chacrinha, que era o que me chamava a atenção, vendendo água. Não sei quem era, mas penso (ao saber dessa sua história hoje), que poderia ser então um 'último' remanescente desses aguadeiros, pois algum tempo depois sumiu. Mais uma vez o meu muito obrigado. Valorizar o passado é a essência para um futuro promissor. Abraço.
ResponderExcluirAinda lembro também dos aguadeiros. Mas nas décadas de 60/70.
ExcluirSão histórias assim é leitores que incentivam e o que me motiva. Laguna é muita rica. Poucas cidades podem se dar a esse luxo.
Grato pela leitura é comentário. Abraço.
Valmir, parabéns pelo teu trabalho.
ResponderExcluirA cada visita ao teu blog, saio um pouco mais lagunense.
Agradeço meu caro. Grato pela leitura. Abraço.
ExcluirValmir, parabéns pela pesquisa e pelo compartilhamento deste nosso passado histórico e pitoresco. Quantas coisas sobre a Laguna permanecem encobertas ou até mesmo esquecidas e que não foram alcançadas por nós no relato dos nossos antepassados e educadores. Detalhes muito ricos dos fatos, que só um apurado esforço de pesquisa e senso de história poderiam resgatar. Até parece, para os dias atuais, um exercício de ficção para o passado. Ainda me lembro, na bica da Carioca, de um dos últimos aguadeiros, se não o último, manobrando o carro-pipa de ré, segurando o cabresto do cavalo para a manobra. Que venham outras dessas pérolas. Abraço do Adolfo PV da Silva.
ResponderExcluirAgradeço a tua leitura, Adolfo. Realmente há muitas histórias na nossa Laguna. Abraço
ExcluirEspalhei essa aula de história nas redes sociais.... abraço!
ResponderExcluirGrato pela leitura e por divulgar. Abraço.
ExcluirAdorei a matéria....fui informada agora, por Amauri Martins, que o último aguadeiro foi o Sr Adão que residia no Campo de Fora. Turqueza Tasso
ResponderExcluirParabéns pela matéria Valmir. Acompanho seu blog há algum tempo. Sou Historiador e aprendo muito com você as histórias da nossa Amada Laguna. Abraço Fraterno.
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