quinta-feira, 8 de abril de 2021

A 1ª greve na Laguna foi dos Aguadeiros da Carioca

 
A primeira greve (paralisação) de serviços que aconteceu na Laguna e que ficou registrada em nossa imprensa, aconteceu em 1902.
Quem a organizou foram os chamados (na época) aguadeiros, os carroceiros que transportavam água da Fonte da Carioca em pipas e a comercializavam porta em porta aos moradores e comerciantes lagunenses, na hoje chamada venda em domicílio. 

“-Não há água! Não há água!”
Era segunda-feira, 24 de março de 1902. Laguna amanhecia sonolenta, acordando aos poucos para iniciar a semana. Uma Semana Santa pelo calendário católico, saliente-se.
Um carroceiro (aguadeiro) na Laguna no início do século XX. Acervo: valmirguedes.blogspot.com
Moradores, comerciantes e populares nas ruas eram surpreendidos por um desfilar de carroças em fila indiana pelas ruas da cidade, conduzidas, logicamente, por seus muares e cavalares e respectivos motoristas.
O cortejo deve ter cruzado toda a extensão da rua Raulino Horn, descido a Conselheiro Jerônimo Coelho e retornado pela rua Gustavo Richard, as vias mais movimentadas do centro da velha cidade.
Dezenas de aguadeiros gritavam:
-Nâo há água! Não há água! protestando pelo racionamento do líquido buscado à Fonte da Carioca.
A contenção na entrega d’água nas torneiras da Carioca pelo zelador havia sido decretada pela municipalidade, através do superintendente (prefeito) coronel José Fernandes Martins.
1ª greve na Laguna. Jornal O Albor de 28 março de 1902. Acervo: valmirguedes.blogspot.com
O ato visava economizar o líquido devido à seca que vinha assolando toda a região sul do estado desde o ano anterior. Naqueles dois primeiros meses do ano de verão não havia chovido uma gota sequer.
O racionamento de entrega de água na Carioca diminuía, obviamente, os ganhos daqueles profissionais autônomos que vendiam à população, em domicílio, a água retirada da tradicional fonte. Bem por isso o protesto. 

Números de pipas
O jornal O Albor de 13 de março de 1902, portanto dez dias antes da greve, informava que os aguadeiros venderam em janeiro e fevereiro daquele ano, 1.676 pipas d’água. Cada uma delas transportava 480 litros.
Foram comercializados 804.480 litros naqueles 60 dias iniciais do ano. Uma média de 400 mil litros mensais.
Infelizmente não é informado o número existente de carroças aguadeiras na cidade e não sabemos qual era média de litros retirados em anos anteriores.
Fonte da Carioca em corte de cartão postal de 1910. Ainda não havia sido construído o muro de arrimo de pedra pelo lado do morro. Note-se o chafariz aberto aos aguadeiros com a água jorrando para se fazer a Foto. Acervo valmirguedes.blogspot.com
Saul Ulysséa em seu livro “Laguna de 1880” (pág. 17), conta que no ano que dá título a sua obra “As carroças d’água eram cinco ou seis que forneciam água à população a 40 réis o pote. Não usavam latas, mas barris de madeira com arcos e asa de ferro, padronizados pela Câmara Municipal”.
Ulysséa também informa em sua obra (pág. 93): "Como não havia chafariz na praia e para evitar despesas com carroças, a aguada para os navios era feita em pipas conduzidas pelos marinheiros: pipas pintadas de branco com arcos de cores vivas, principalmente encarnada, que eles enchiam na Carioca e rolavam pelas ruas até os trapiches".

Vinte e dois anos depois, em 1902, ano da greve, o número de aguadeiros deveria ser bem maior, mas não ficaram registros da quantidade. 

Convocação e fim da greve
Houve quem reclamasse da atitude dos grevistas, taxando-a de desnecessária, precipitada e oportunista.
Outros moradores eram solidários à paralisação, aliás, como sempre acontece nesses atos de protesto.
Além da seca, alguns entendidos atribuíam a diminuição do fluxo d’água na Carioca à construção no local em 1898 de alguns pilares e um muro de pedras para contenção das enxurradas.
Logo os grevistas foram convocados para uma reunião com o Conselho Municipal e o superintendente que explicaram da necessidade da racionalização d’água: ou era isso ou nada mais seria retirado da Fonte da Carioca até sua normalização.
Com tão "democrática" decisão a greve foi encerrada no mesmo dia.
Encerrada com a promessa de criação de uma comissão que seria formada por profissionais gabaritados para estudar o problema, quais suas causas e possíveis soluções, exarando assim um parecer.

Comissão de Estudos
A comissão foi formada pelos engenheiros João Carlos Greenhalg e Joaquim Dias da Cunha.
Dias depois, estudado e analisado o problema, os dois profissionais elaboraram um relatório que foi entregue ao superintendente.
Nele concluíram que a causa maior da diminuição do fluxo d’água na Fonte da Carioca era realmente a ausência de chuva.
Descartaram a construção no local de pilares e muros de contenção como causas influenciadoras.
Fonte da Carioca ao fundo, ao lado a casa do tenente-coronel Joaquim José Pinto de Ulysséa. Edificação construída em 1866. Primeira com platibanda, conforme Saul Ulysséa. Ainda sem a figueira plantada em frente. A Praça Lauro Muller é um descampado. Foto: Acervo Marega
Sugeriram que o desmatamento dos morros que circundam à Carioca fosse proibido com medidas enérgicas, através de multas e prisões dos infratores.
E que fosse feito nos morros o plantio de mudas de árvores de rápido crescimento.
E terminava o relatório com a proposta do aumento das dimensões da caixa de captação e/ou construção de um reservatório maior.

Desmatamento dos Morros
O desmatamento dos nossos morros sempre foi uma preocupação constante das autoridades lagunenses no passado.
Os jornais de nossa cidade ao longo do século XX trazem várias reportagens-alertas sobre o problema. Isso quando nem se falava em meio-ambiente, ecologia e preservação ambiental.
O grande problema naqueles anos era que muitos moradores na falta de condições ou até mesmo por economia, não compravam para seus fogões as achas de lenha que chegavam dentro dos porões de canoas nas docas.
Era barato e simples atacar as árvores dos morros que circundam a cidade, ato que provocava desmatamentos.
Para fugir à fiscalização se criavam vários golpes. O jornal O Albor alertava sobre um deles:
“A fim de evitarem ruídos, muitos lenhadores servem-se de serrotes e trazem a lenha à noite”. 

O superintendente então fez valer sua autoridade dando ordens aos zeladores para que fiscalizassem o desmatamento dos morros da cidade.
“Acompanhado de um praça (policial), o zelador Antônio Fernandes Machado percorre diariamente os morros, a fim de punir os infratores”, informava o jornal.

Era para chover de mansinho, como na canção
Com a seca prolongada, devotos oravam por chuva para amenizar a situação e havia mesmo quem fizesse promessas aos santos. Missas foram rezadas nesse intuito pelo vigário Pe. Manoel João, conforme registram os jornais da época.
É bom lembrar que naquele mês de março a imagem de Santo Antônio dos Anjos estava longe, levada ao Rio de Janeiro para ser encarnada (restaurada), conforme já contei aqui. Irá retornar em julho daquele ano, depois do dia em sua homenagem.
Mas foram tantos os pedidos ou alguém dançou a dança da chuva tão bem dançada, com tanta devoção, que São Pedro atendeu aos pedidos, ouviu às lamúrias da população.
E a chuva veio. Muita. Chuvas torrenciais que inundaram a cidade.
Choveu todos os dias e bastante no domingo, 6 de abril e terça-feira, 8 de abril daquele ano. Eram as águas de março atrasadas caindo no início de abril e fechando o verão. Com isso a situação da Carioca se normalizou.
Mas a chuva foi tanta que logo o povo começou a suplicar que ela cessasse. Que São Pedro fechasse as torneiras do céu. 

“Águas em cataratas, de plúmbeas alturas e flamíneos raios”
Com isso, pelas páginas do O Albor, alguém se utilizando do pseudônimo Armando de Clemont dizendo que escrevia da cidade da Laguna, “nas vizinhanças do mar gemente”, salientou a contradição do ser humano, sua inconstância e eterna insatisfação de desejos. 
Pela beleza do texto poético, o transcrevo: 

“Água! Água! – era o clamor geral!
Água! Água! – era a prece fervorosamente dirigida ao Senhor.
Água! Água! – era o desejo veemente da população, ao ver decrescer o precioso líquido na principal nascente de nossa terra.
Água! Água – era a aspiração ardente do lavrador, ao verificar que as plantações, tão esperançosamente feitas, feneciam à mingua de chuvas, queimadas pelos raios ardentes do sol!
Clamor, prece, desejo, aspiração, foram após longo tempo finalmente ouvidos... E domingo à noite – noite sombria – e terça-feira de dia – dia tenebroso, abriram-se as cataratas do céu e a água – água abundante – água em catadupas – despenhou-se das plúmbeas alturas sobre a cidade sequiosa.
Então, vendo que Deus atendera as suas constantes súplicas... acoimaram-no de prodígio e água! água! não foi mais o clamor geral; a prece fervorosamente balbuciada; o desejo veemente da população, a aspiração ardente do lavrador, que agora receia que as chuvas lhe matem as plantações tão esperançosamente feitas!
Clamor, prece, desejo, aspirações, foram então substituídos por:
-Basta, Senhor! Basta!...
E Deus – bom e compassivo – ouvi-os de novo e de novo o sol ardente dardejou sobre a terra os flamíneos raios!...
São assim os homens! Sempre insatisfeitos, sempre contraditórios, sempre volúveis!...
Humanidade! Humanidade!
Quando te julgarás satisfeita?!... Quando deixarás de ser inconstante?!... Quando deixarás de ser a eterna contradição?!...”. 

Providências pelo governo
Mas a seca prolongada de 1901/1902 que tanto fustigou a população lagunense não foi esquecida. Tanto é verdade que o jornal O Commercio de 5 de julho de 1903 relembrava: 

“Ainda é bem recente o período angustioso que atravessou a população por ocasião da falta d’água”. E foi essa triste lembrança que levou o novo superintendente municipal da Laguna José Maurício dos Santos a se decidir em outubro de 1903 pela construção de um novo reservatório na Carioca, ampliando-a, conforme sugestão daqueles dois engenheiros um ano antes.
E assim, um mês depois, em novembro daquele ano, iniciaram as obras do novo reservatório da Carioca pelo lado sul, com direção dos trabalhos a cargo de Manoel Pinho (médico) e Polydoro Olavo Santiago, com planta e desenho do frontispício de Frederico Selva, os dois últimos engenheiros na construção dos Molhes da Barra da Laguna. 

O chafariz do Mercado
Outra obra também foi construída nesta época. Trata-se de um chafariz ao lado do Mercado Público para abastecer moradores, comerciantes e navios no cais do porto com água da Carioca através de encanamento sob o leito da rua Tenente Bessa, assim encurtando distâncias e dispensando o transporte pelos aguadeiros.
O jornal O Commercio de 24 de julho de 1904 informava:

“Acha-se concluído e entregue ao público o chafariz construído pela Intendência Municipal, na rua da Praia ao lado do Mercado.
O Chafariz ao lado do antigo Mercado Público, incendiado em 1939. A Casa Brasil, de Luiz Severino Duarte hoje é um prédio de nome Judith Batista tendo no térreo a lanchonete Estrela, entre as ruas Gustavo Richard e Tenente Bessa.

É de construção simples e elegante, cheio de ornatos, contendo duas torneiras cujas águas são lançadas em duas bacias de cimento.
O desenho foi feito pelo sr. Frederico Selva e a obra executada pelo sr. Marcos Gazola”.
A jarra superior veio do Rio de Janeiro pelo vapor Industrial, como registrou o mesmo jornal.
Jornal O Commercio de 24 de julho de 1904.
Gazola também será o responsável pela construção do chafariz do Jardim Calheiros da Graça, dali a alguns anos, em 1915.
Com o incêndio do Mercado em 1939 e a construção do novo, inaugurado em 19 de janeiro de 1958, onde terá ido parar esse Chafariz? Foi derrubado? Que fim levou? Quem o levou? 

A nova caixa d’água da Fonte da Carioca comportava 48 mil litros e foi inaugurada em 1906. A mais antiga acolhia apenas 8 mil litros.
No que o jornal O Albor de 12 de agosto daquele ano registrou, já fazendo jus a fama que atravessa os séculos desde então:
“A Carioca da nossa água afamada, generosa dádiva da providência, de cuja posse tantos nos orgulhamos”. 

Bem por isso o prédio da Fonte da Carioca, construído em duas etapas, tem as datas em seu frontispício de: 1863 e 1906.

18 comentários:

  1. Geraldo de Jesus08/04/2021, 23:06

    Que história hein Valmir. Não sabia dessa greve nem porque a Carioca foi construída em duas etapas. Valeu.

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  2. Muito boa a matéria. Extensa mas interessante. Acho que a Carioca dá um livro. Hehehe. Abraços.
    Rosângela

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    1. Dá mesmo. Aliás, acho que muitos assuntos na nossa Laguna dão livros. Festividades religiosas, esportes, clubes, associações, etc.
      Grato pela leitura.

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  3. Luiz Néry Miranda09/04/2021, 16:45

    Amigo Valmir, não conhecia tanto pormenores da história da Nossa Terra. Merecia estar nos Curriculuns escolares.
    Abraço

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    1. A cada pesquisa a gente vai descobrindo essas preciosidades, professor.
      Abraço. Agradeço a leitura.

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  4. Parabéns pela excelente reportagem que, didaticamente nos abrilhantou que mais um episódio de nossa amada Laguna.

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    1. Nossa Laguna sempre repleta de episódios. É uma joia rara.
      Grato pela leitura.

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  5. Bom dia. Parabéns por mais essa aula de história sobre a nossa cidade. Que coisa inusitada e que se perderia no tempo, não fossem as suas pesquisas. Que maravilha é o conhecimento. Lembro quando criança, no final dos anos 70, de uma carroça que passava com aquela buzina parecida com a do chacrinha, que era o que me chamava a atenção, vendendo água. Não sei quem era, mas penso (ao saber dessa sua história hoje), que poderia ser então um 'último' remanescente desses aguadeiros, pois algum tempo depois sumiu. Mais uma vez o meu muito obrigado. Valorizar o passado é a essência para um futuro promissor. Abraço.

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    1. Ainda lembro também dos aguadeiros. Mas nas décadas de 60/70.
      São histórias assim é leitores que incentivam e o que me motiva. Laguna é muita rica. Poucas cidades podem se dar a esse luxo.
      Grato pela leitura é comentário. Abraço.

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  6. Romulo Camilo11/04/2021, 11:32

    Valmir, parabéns pelo teu trabalho.
    A cada visita ao teu blog, saio um pouco mais lagunense.

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  7. Valmir, parabéns pela pesquisa e pelo compartilhamento deste nosso passado histórico e pitoresco. Quantas coisas sobre a Laguna permanecem encobertas ou até mesmo esquecidas e que não foram alcançadas por nós no relato dos nossos antepassados e educadores. Detalhes muito ricos dos fatos, que só um apurado esforço de pesquisa e senso de história poderiam resgatar. Até parece, para os dias atuais, um exercício de ficção para o passado. Ainda me lembro, na bica da Carioca, de um dos últimos aguadeiros, se não o último, manobrando o carro-pipa de ré, segurando o cabresto do cavalo para a manobra. Que venham outras dessas pérolas. Abraço do Adolfo PV da Silva.

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    1. Agradeço a tua leitura, Adolfo. Realmente há muitas histórias na nossa Laguna. Abraço

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  8. Espalhei essa aula de história nas redes sociais.... abraço!

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  9. Adorei a matéria....fui informada agora, por Amauri Martins, que o último aguadeiro foi o Sr Adão que residia no Campo de Fora. Turqueza Tasso

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  10. Parabéns pela matéria Valmir. Acompanho seu blog há algum tempo. Sou Historiador e aprendo muito com você as histórias da nossa Amada Laguna. Abraço Fraterno.

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