Meu amigo jornalista Márcio Dison, lá
de Florianópolis, foi selecionado pelo OFF FLIP, o maior prêmio literário do
Brasil.
Jornalista Márcio Dison |
Nossos parabéns, merecidamente.
O conto premiado de Dison, intitulado “Torniquete”, merece a
publicação neste Blog, em primeiríssima mão:
TORNIQUETE
Regra é regra, sólido é sólido, líquido é líquido, gasoso é gasoso, exceção
é exceção. Em qualquer estado, exceção é exceção. Mesmo em descuido, quando se
nasce ao Deus-dará a vivente progride ensimesmada. No compasso de sono profundo,
constrói-se uma personalidade apática e tímida, junção de células como a origem
do verbo, em fragmentos. Por mais que se tente ludibriar os blefes da vida, o
futuro desta personagem tende a apressar-se em virar passado.
Da ferida o torniquete às vezes é o próprio feto, sorteado para sobreviver
entre os milhares jogados nas latas de lixo ou esmagados pelos ferros em
pocilgas maquiadas como clínicas. O ultrassom transmuta foto e revela a grafia
divina da vida menina. Assim o descaso tornou-a enigma, palavra morta,
vira-bosta, a estranheza da metamorfose ao cisne em ninho de alheios singulares
grileiros. O feto em foto ultrassônica, desafeto, expulso do barraco uterino, a
natureza a esvurmar seu mágico desatino ao acaso de um ocaso faraônico.
Uma infante já sob estigma, não fosse ainda de fato e apelido azulzinha,
cabocla no País das Sinhazinhas. Na idade tenra é que se mastiga a suculência
dos dias. O balé das pipas entrelaçadas – corpo único – ao vento, nos raros
átimos em que esquecia a truculência da enorme pia de mármore translúcida de
tantas panelas e louças e restos de comida e moscas e uma água salobra a pingar
da velha torneira de cobre.
A água
afiada na pele, a chicotear e o banho de sangue de bronquite e pneumonia, Meu
Deus, só uma Ave Maria afogada no cobertor de penas. É nestas horas que a pobre
conjuga o insignificante, sem encontrar na vida significado. O desumano e a
humanidade, o indigno, a dignidade, altruísmo, mediocridade. Tudo é antítese
até a chegada da puberdade. É quando o anjo vira fênix no impulso do momento,
na falta de discernimento. Sem noção é o que parece, o início ou o recomeço,
ora transparente e algumas vezes espessa.
De presente
ainda lhe deram Das Dores, porque simplesmente Maria ficaria pouco evidente, ao
estar na vida como perspectiva, de quase morta a uma sobrevida. Alguns receiam
sua verdade, ser o que é, como a proscrita, ou ser sem dó ou piedade. É como
tijolo, singelo em sua unidade mas destruindo em blocos paredes de ódio, muros
de inveja ou edifícios de preconceito.
Por não
conhecer o amor, de tudo ao seu permaneceu atenta desde os 13, menina arrastada
pelo primeiro que lhe passou conversa mole, louca que estava para escapar da senzala
de um lar de pai emprestado e desnaturado a lhe surrupiar as virtudes.
Sou de tudo
um pouco e dela só ouvi histórias de vovó, de seu estilo geniosa e louca. Das
partes dela, pedaços que perdi pelas tramoias do tempo encontro em depoimentos
de membros de uma família diferente – aqueles que jamais viram maldade em Das
Dores.
Às vezes
ouço, quase sempre faço ouvido mouco para tantos e enormes rasgados elogios
para a mais que perfeita pretérita mãe que nunca conheci, que só com o tempo
aprendi. Por isso, ser o que sou não é labirinto, não tergiverso nem minto. Ser
o que sou é freudiano mas pode ser o rarefeito do altiplano. Não ser o que
poderia perde o sentido e dá à vida paridade, meio como Monod discorrendo sobre
o acaso e a necessidade.
Sou filha,
morro por e com ela, tenho múltiplas faces mas meu nome não é felicidade. Como
o filho d’Ele, fui crucificada pelas vicissitudes de uma vida sem eira nem beira,
telha feita nas coxas. O silêncio chora a saudade da algazarra de um tempo
criança, sobre uma Terra aflita a ouvir murmúrios de flores abstratas, vozes
sem cores enfeitando primaveras.
Agora, na maturidade ruge o urge: o sujeito procura os substantivos e
predicados de um passado desconhecido. O paradeiro de entes que, mal ou bem,
fizeram parte de sua história. Quando se procura, o fruto é fato tanto quanto
pode ser fático o putrefato. Inato, a incerteza, indefesa, te leva de predador
a presa porque toda vida é da morte sobremesa. Mas a procura também prega peças
de quebra-cabeças, cuja junção dá bem o Norte do Ser Humano: 99% emoção.
Se sei que nada sou e que nada sei espantei-me ao saber detalhes de meu
pai porque li o bilhete falando da hora da raiva em que ficou ‘cego porque
lugar de mulher é fazendo comida sem encher o saco’ e relatando o momento em
que grudou “naquele pescoço como em um prato de comida até ela virar os
olhinhos azuis’ e então seu riso de excitado já que ‘era assim que ela ficava quando
recebia meus carinhos’ e deve ter sido ‘numa destas vezes que fizemos o anjinho
que dorme no bercinho barbada de brechó’.
Desde o seio, o leite e seu veio, o céu, também sei que sou o que não
saberei, um ser coração ou não ser mente, que ficou para semente, definitivo,
eloquente, primitivo como o 4x4 da cela onde meu pai que não é Deus mas divino
em sua ignorância projetou o nó inglês de gravata improvisada com cadarços
pendurados logo abaixo da lápide de papel:
- Das Dores, vou te encontrar para pedir Perdão!
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