terça-feira, 28 de junho de 2016

Os anti-heróis anônimos

Durante grande parte de sua vida, Richard Calil Bulos, o Chachá, de saudosa memória, mais até do que as artes plásticas exerceu o jornalismo em nossa cidade. Bem por isso fundou inúmeras publicações e foi redator de várias outras.
Foi mestre na arte de escrever e de produzir uma manchete chamativa, com pinceladas sensacionalistas. Em seu estilo registrou muitos acontecimentos do dia a dia da cidade. Ele sabia criticar, elogiando e extrair de um pequeno fato a seiva do texto que prenderia a atenção dos leitores.

Era justo em seus escritos aos elogios a personalidades políticas, empresariais ou autoridades que se destacavam na sociedade à ocasião.
Crédito: Marengo/ Gente da Minha Terra,
de José Bessa.
Mas também  sabia fazer o mesmo ou até melhor com os desvalidos pela sorte, com os não agraciados pela riqueza e sobrenomes, pedintes e andarilhos que perambulavam pela nossa Laguna. Os chamados “tipos populares”. Estes sempre o foram em grande quantidade, em todas as épocas.
Vitória, Felipe da rebeca, Edite, lata, Arina, Sovai, Biguá, Clemente, Ibraim, Jiki, Clóvis, Quintino... Foram tantos.

O lagunense José Bessa, em seu livro “Gente da Minha Terra”, retratou muito bem alguns deles, pequenos e humildes, a quem os chamou de “anti-heróis anônimos que em certa medida exprimem a alma coletiva, ensinam verdade humana abeberada na fonte”.

Quando do falecimento dos que mais se destacavam na sociedade lagunense, nosso jornalista Chachá produzia matérias memoráveis, despedidas emocionantes tecendo loas aos seus nomes e destacando posições galgadas e currículos.

Mas também encontrava tempo e espaço no jornal para registrar igualmente a morte dos que viviam à margem da sociedade, como se convencionou chamá-los.
Eram seres humanos com seus dramas e infelicidades, suas manias, vícios e psicoses.
 Seres humanos... Para Chachá era o que bastava. Precisa realmente de algo mais?
Até porque, cumpridos seus resgates, suas jornadas terrenas, muitos desses personagens, ditos populares, podem estar hoje em melhores moradas espirituais.
Talvez, e bem ao contrário de alguns outros figurões que tiveram discursos elogiosos, cortejos pomposos, enterrados com seus títulos e vaidades. Estes, ainda podem estar vagando perdidos, odiosos e odiados, mergulhados em seus segredos, mesquinharias e maldades de uma vida.

A título de curiosidade busquei em meus arquivos de antigos jornais, dois pequenos textos obituários produzidos pelo Chachá.
São registros de humildes falecimentos de conhecidos personagens populares que marcaram época e gerações na história da nossa Laguna.
Mas observem as singelezas dos textos! As expressões de facetas sentimentais e poéticas nos despretensiosos apontamentos de um adeus.

Sobre a morte do Quintino:

...E os sinos emudeceram
Ao contrário do romance “Por quem os sinos dobram”, de Ernest Miller Hemingway (editado em 1940), os sinos da Matriz Santo Antônio dos Anjos emudeceram no justo instante em que o errante Quintino, diante da igreja, em caixão de degradante qualidade, era carregado rumo ao cemitério público, na tristonha manhã de 15 do corrente.
Momentos antes, eles haviam repicado, lenta mas sucessivamente, em sinal de adeus à uma dama da nossa sociedade , que, por infelicidade, tivera em data igual o mesmo destino que ele.
Que Quintino não trabalhava ou não gostava de trabalhar lá isso é verdade. Todavia representou para Laguna a imagem do indolente sem ser nocivo, do vagabundo que, se à época de Charles Spencer Chaplin, teria servido de inspiração ao inconfundível ator e cineasta inglês, criador da personagem dolorosamente cômica de Carlitos.
Quem conhece a produção literária de Hemingway, verá que os nomes dados a duas de suas obras se amoldam, por ironia, a este fato que narro com pesar:
- Por quem os sinos dobram?
- Eles dobram por ti, por nós, por todos.
“O sol também se levanta” (editado em 1926). Por sua vez, traduz que o sol também se levanta para as criaturas pobres, como o fora em vida o Quintino.

A cidade perdeu Clóvis
Clóvis de tal. Que Deus o tenha na sua guarda infinita e inviolável.
Pobre criatura de ontem. Palhaço de muitos, escravo da desilusão e do infortúnio.
Clóvis, o farrapo humano que carreteava pelas ruas centrais em busca de alimentos e de míseros cruzeiros. Um ser desajeitado, sem atrativos físicos e proprietário de grave deformidade psíquica.
Ele, como muitos afirmam, não morreu da bebida. Na realidade, Clóvis conheceu a morte e com ela se foi devido ao pouco caso que a sociedade lagunense lhe endereçava.

Morreu sem conhecer um prato de comida ladeado de garfo e faca, sem conhecer a intimidade de uma mulher, sem haver tido sobre o corpo uma roupa decente.

Um comentário:

  1. É bem assim, por aqui só dão valor ao personagem após sua passagem.

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